Ele é um professor aposentado. Depois de mais de 30 anos na Faculdade de Arquitetura, resolveu parar com aulas, palestras, orientações de mestrado e doutorado, bancas examinadoras e entrevistas na TV e no rádio. E, embora tenha se afastado da sala de aula, não está totalmente esquecido.
Há um grupo de quatro rapazes – todos arquitetos, todos ex-alunos do velho professor – que frequentam a casa do mestre. Lá se vão mais de cinco anos desde que se formaram e não perderam o carinho e o respeito pelo brilhante profissional. Pelo menos uma vez por semestre, reúnem-se e vão comer uma pizza com ele. Esta noite é uma ocasião especial: um deles vai se casar e quer convidar o professor para a cerimônia.
Quando chegam, os quatro são recebidos com alegria pelo velho solitário que nunca se casou, nem tem filhos e vive metido com seus livros, com suas idas ao cinema, suas visitas a museus e suas cada vez mais raras viagens para fora do País. O professor está feliz, vê-se logo. Ele ainda não sabe do casamento de um dos rapazes, nem do convite que receberá. Para ele, este é mais um jantar com o qual os meninos (é assim que sempre se refere a eles) demonstram seu carinho e sua amizade pelos “velhos tempos da universidade”.
Ninguém sabe, mas o professor tem dois segredos que jamais compartilhou com pessoa alguma. O primeiro é que sempre foi apaixonado por um deles – o João. O segundo, talvez mais impublicável, é que levou o Augusto para a cama, nos tempos em que dava aula para eles. Arrepende-se? Não. O rapaz era maior de idade, sabia o que fazia e, se tinha caído nos encantos do professor, esse não tinha enganado nenhuma criança. O problema maior – e a dor que persiste – é o João, que o velho mestre não consegue esquecer, nem olhar como se fosse uma pessoa comum. João é o favorito, o aluno amado, como no episódio bíblico, e o professor se sente um pouco herege por essa associação. O fato é que sempre adorou o ex-aluno, mas jamais teve coragem de revelar seus desejos e sua paixão. O rapaz, hetero, vivia pegando as meninas da classe dele e de outras classes. Que chance teria o mestre? Nenhuma, provavelmente. Deveria ter tentado? Não tinha certeza disso. Então, deixou que o tempo curasse esse sentimento – e o tempo não curou.
Depois dos abraços efusivos, sentam-se todos na ampla sala do apartamento muito bem mobiliado. O professor apressa-se em pegar o telefone para pedir as pizzas. O vinho, ele o tem em casa – importado, pois “os meninos merecem”.
Quando as pizzas chegam, sentam-se todos ao redor da grande mesa já posta com antecedência. A música ambiente dá à sala um ar ainda mais aconchegante. Enquanto abre o vinho, o professor toma uma resolução. Está velho, tem o direito de não guardar segredos, tem o direito de falar o que sente, principalmente o que está guardado por tantos anos. Que diferença fará se João souber do amor do mestre depois de tanto tempo? Vai mudar alguma coisa uma declaração de amor feita por um velho que não tem qualquer esperança de realizar o seu desejo? E é capaz até de o João se sentir lisonjeado por esse sentimento cultivado da parte de um homem tão respeitado como o professor… Chega de guardar isso! Precisa falar!
Ele diz aos quatro que fará uma declaração; vai contar um segredo que ele gostaria que todos soubessem. Nesse momento, Augusto sente um frio na espinha. Perde instantaneamente o apetite, a pizza passa a não ter gosto nenhum, sua boca fica seca, esvazia uma taça inteira de vinho e fecha os olhos como a imaginar que aquilo é só um pesadelo. Parece que o chão se abre sob seus pés, perde a cor, sente-se tonto.
Os outros não parecem notar. Conversam animadamente e riem, curiosos, cada um perguntando ao professor qual é esse segredo. O que ele tem pra contar?
É o João, contudo, quem se adianta e dispara: – Professor, só uma coisa: vou me casar daqui a dois meses e quero que o senhor seja um dos padrinhos! Seria uma alegria e uma honra pra mim.
O velho mestre não sabe bem o que dizer. Por segundos, fica com o garfo no ar, sem levá-lo à boca e sem abaixá-lo no prato. Sorri e finge felicidade, aceitando o convite prontamente e dizendo que a alegria é dele por ter sido lembrado. João não se contém de felicidade. Pega o celular e liga para a noiva, contando-lhe que o professor aceitou ser um de seus padrinhos. Tudo é festa.
Quando as risadas se acalmam, é o Sérgio quem diz: -Meus amigos, não sejamos grosseiros. O professor queria nos contar um segredo e não lhe demos chance de fazer isso. O que é, professor? O que o senhor tem pra nos contar?
É o Luiz quem reforça o pedido:
– Vamos lá, professor: que segredo é esse?
Entre um pedaço de pizza e outro, o anfitrião desconversa. Diz que nem é tão importante assim, que, na verdade, queria contar aos rapazes que pensou muitas vezes em largar a carreira acadêmica para trabalhar num escritório de arquitetura. Era isso. Embora não parecesse, estava cansado da sala de aula.
Ninguém percebe seus olhos marejados atrás dos óculos e atrás da taça de vinho.
Do outro lado da mesa, é o Augusto quem respira, aliviado. Seu celular toca. É a esposa, ela também ex-aluna do professor, perguntando se o velho mestre está bem e mandando-lhe um beijo.
A conversa flui animada. Augusto não ouve nada; o professor também não. Cada um absorto em seus pensamentos. Um arrependido pelo que fez; e o outro, pelo que deixou de fazer.
2 Comments
Professor, passei por isso dias atrás! Falei para uma certa pessoa o que sentia por ela. A pessoa sorriu e de forma elegante e graciosa desconversou. Não houve mal-estar, pelo contrário.
Olá Prof Vitor
Belíssima crônica. O que é a vida que não uma sequência de acasos. Cada cérebro humano é uma caixinha de surpresas. Oh Lord!!!!
Parabéns pela crônica