Até que ponto diferenças podem corromper um relacionamento? É possível administrá-las? O preço da felicidade é o cuidado constante?
AMOR
“O amor acaba na descontrolada fantasia
da libido; às vezes acaba na mesma
música que começou, com o mesmo
drinque, diante dos mesmos cisnes (…) e
o amor acaba” – Paulo Mendes Campos
Desde que nos conhecemos, fizemos um grande esforço para deixar nossas diferenças de lado. Tínhamos a certeza de que nossos gostos e nossas formas de encarar a vida poderiam ser negociadas e, num delírio ultrarromântico, julgamos que o amor nos ajudaria a superar o que pudesse nos distanciar um do outro.
O tempo foi passando, mergulhamos na relação e tudo parecia perfeito: eu cedia um pouco aqui, você cedia outro tanto ali, e íamos vivendo lado a lado, almas de mãos dadas, sombras ligadas por um cordão invisível e indestrutível.
Durante muito tempo, foi bom acordar ao seu lado, abraçar você antes mesmo de abrir os olhos e encarar a vida que me esperava lá fora. Ver o sol bater no seu corpo nu antes de você entrar no chuveiro, seus pelos loiros realçados pela luz do sol, suas coxas grossas de ciclista caminhando pelo quarto enquanto eu criava coragem para me levantar e ir à faculdade… essa era a manhã perfeita pra mim. Quantas vezes fiquei te observando, você de um lado para outro, nu, atendendo ao telefone antes de sair para o trabalho! Quantas vezes acariciei suas costas enquanto você calçava suas meias, sentado na beira da cama!
Os dias foram passando e fomos nos distanciando. A planta que você me deu murchou e morreu… eu não quis interpretar aquilo como um sinal, não quis ver relação nenhuma entre as duas coisas.
O fato de eu estar num emprego novo a cada 30 dias não lhe agradava, hoje eu sei. Você, tão pés no chão, muitos anos na gerência do banco, querido pelos clientes, respeitado pelos funcionários das agências que chefiou – concurso prestado, estabilidade, dinheiro no fim do mês, 13º, férias remuneradas, contas em dia, viagens programadas para as quais você me levava mesmo que eu não tivesse condição de acompanhá-lo. Meu jeito de quem encarava a vida mais “na boa”, sem me preocupar com coisas como seguro de vida, aposentadoria, aquisição de um imóvel. Você nunca me recusou o seu carro, sobretudo porque não precisava dele para ir ao trabalho – você sempre pegou metrô, e fico me perguntando, hoje, se isso era um gesto silencioso de generosidade para o qual eu nunca prestei atenção.
Sua voz calma, sempre num tom suave, constante e agradável, mesmo quando a vontade era explodir por causa de alguma coisa errada. Seu jeito de me olhar por cima dos óculos, baixando o livro que você estava sempre lendo. Seu olhar que me convidava para o sexo, para a melhor das transas que eu sempre tive em nossa (sua) cama. O gozo que atingíamos simultaneamente, e você sempre me dizendo que era algo raro de se conseguir por aí.
Eu com a cabeça no seu peito grisalho, dedos deslizando até sua barriga, brincando com os mamilos, pondo minha língua, primeiro em um, depois no outro, fazendo você gemer de prazer, você ereto, grande, vermelho, pronto para minha boca. E tudo começava de novo… As diferenças, na verdade, começavam depois disso.
A atenção que você prestava à sua família, os cuidados com seus pais e meu ciúme por não conseguir entender a importância que tudo isso tinha pra você. Meu jeito meio hostil de tratá-los, não muito ríspido, mas o suficiente para que não se sentissem confortáveis aqui em casa. Sua mãe e seu pai sempre tentando ser gentis, e eu cordial, nada mais que isso… nunca mais do que isso. Nunca tive essa proximidade com minha família, mas também não serve como justificativa para meu estúpido ciúme e descabida insegurança. Éramos tão iguais no propósito de um casamento sério, e tão diferentes nos valores que possuíamos.
Larguei a faculdade pela terceira vez – pela terceira vez “não me encontrei no curso”, foi o que eu lhe disse. E você, me olhando por cima dos óculos de leitura, me perguntando: “E vai fazer o que daqui em diante, rapaz? Você já tem 26 anos…”. Eu abrindo a geladeira, pegando uma cerveja, dizendo que ia dar uma volta “para espairecer”, sempre fugindo, sempre me desviando de uma conversa mais adulta com você.
E veio o cansaço e o dia em que você não me esperou para ir dormir. Cheguei de uma reunião de amigos no bar da esquina e você já tinha ido pra cama. Fiquei no escuro da sala, só as luzes da cidade lá fora.
E veio a manhã seguinte, quando você saiu sem dizer bom dia ou a que horas chegava.
E veio o dia sem assunto, a crônica de Paulo Mendes Campos, o silêncio na sala, o som angustiante do tique-taque do relógio – a música que você ouvia baixinho enquanto lia e o gelo no copo do whisky importado.
E veio a falta de desejo. E veio a primeira traição.
E veio minha decisão de ir embora. Parecíamos tão iguais, e éramos tão diferentes.
E veio o seu silêncio quando tudo se acabou. Não houve um pedido para que tentássemos de novo – nem meu, nem seu.
E, em meio a malas feitas e coisas separadas, creio que você será mais feliz sem mim.
4 Comments
Uauuuu! É por aí mesmo.
Amor, palavra pequena mas complexa para o ser humano, mas vc sempre desenrola para nos fascinar, amei, obg.
Nada é eterno, né não? Ahhhhhhhhhh, não nego, “viajei” nessa crônica.
A difícil Arte do Relacionamento. O próprio título já nos remete ao desenrolar desta Crônica deliciosa de ler e como já disse em outras vezes, curiosidade em como vai acabar. Gostei muito e quantas minúcias no relacionamento nos são apontadas. 🤗🤗