“O valor das coisas não está no tempo em que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso, existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis” – Fernando Sabino.
O barulho da música, as luzes intensas que se acendem e se apagam; centenas de pessoas que se aglomeram; a madrugada que avança até o sol nascer para tudo se acabar até a próxima noite, quando tudo recomeçará. Assim foram e assim são as noites em boates desde sempre.
Nessas numerosas madrugadas, conheci muita gente que não valia um minuto de conversa, mas também encontrei pessoas especiais, escondidas na multidão aparentemente uniforme. Entre elas, está o Batista!
Uma das lutas intermináveis de quem se propõe a escrever é conseguir expressar o que está sentindo: como expressar o que se traz no coração?
Acredito mais no gesto do que no dicionário; mais no olhar do que na Gramática; mais no que se diz com o silêncio do que se pode dizer com todos os tratados da língua. E, assim, espero demonstrar para este amigo tudo o que ele significa pra mim. Deixo que ele veja nos meus olhos a minha admiração, meu carinho e meu afeto que nasceram com o tempo e se fortaleceram com as noites todas de muita conversa e muita cumplicidade sobre temas que variavam dos mais divertidos aos mais sérios. E ele não faz ideia de como vou para a pista de dança e do quanto fico pensando e pensando no que acabamos de conversar. Quantos pensamentos! Quantas reflexões!
As noites em boates podem ser, paradoxalmente, de profunda solidão, tanto para os funcionários quanto para os clientes. Cercados por centenas de pessoas, nem assim podemos nos sentir acompanhados. Nesses lugares, estamos sempre além ou aquém do juízo que desconhecidos fazem de nós. Isso, quando somos notados. Batista conhece bem essa solidão, mas sabe lidar com ela até que a noite termine e ele possa voltar para sua esposa e filhos.
Por vezes, eu me sentia um intruso em seu trabalho, quando perdia a noção do tempo e ficava ao seu lado, ouvindo suas histórias de vida e aprendendo com elas. E minha admiração por ele aumentava – sua luta, seu cansaço de tudo aquilo, seus dramas, suas alegrias, seus dias e noites difíceis, as esquinas de sua existência. E eu me sentia honrado por ele compartilhar comigo tanta coisa de sua vida. Depois de um certo tempo, ir àquela boate já não era mais um simples “ir à boate”. Não. Era uma oportunidade de estar com ele e conversar sobre assuntos interessantes. Muitas vezes, nem precisamos falar – temos o silêncio entre almas que se entendem.
“Que tanto o Vítor conversa com o Batista?”, perguntou, certa vez, uma pessoa que eu nem conhecia direito a um amigo meu. As paredes têm olhos, têm ouvidos… e sentem ciúme. Num ambiente de tanta superficialidade e vaidade, eu encontrava no Batista uma ilha de quietude e profundidade na qual eu podia me refugiar – apesar do barulho da música ensurdecedora.
E nossas conversas iam longe – literatura, cinema, política, família, sonhos, a vida! Tudo podia ser assunto para nós. E eu seguia para a noite com a certeza de que o encontraria e de que seriam momentos muito bons. Batista é iluminado. Tem um jeito calmo que esconde um íntimo pulsante, intenso, de muita vida. Um tanto tímido e reservado, ele é um vulcão adormecido, como eu lhe disse certa vez. E quem observa só a aparência desse vulcão não faz ideia de tudo o que ele contém. Quem o vê apenas como o homem bonito que é está perdendo muito de sua essência; está perdendo muito do poeta, cronista, observador do comportamento humano, homem vivido que aprendeu muito e tem muito a ensinar.
Batista é um escritor talentoso! Amante de livros, ele diz muito com sua escrita, em prosa ou em verso. Suas poesias são intensas, independentemente do tema abordado – e o mesmo se pode dizer das crônicas que ele já me mostrou. Seus textos marcam profundamente o leitor – seja por sua habilidade com as palavras, seja pelo modo franco como expõe seus sentimentos no papel. E ele fala também com o olhar: basta que se preste atenção a seus olhos. Um homem pronto a uma palavra gentil: basta que se seja gentil com ele também e que se respeitem a sua poesia e seus versos interiores.
(Pois há pessoas que trazem a poesia dentro de si. Há pessoas que trazem versos prontos para serem lidos – não por todos, mas por quem lhes prestar atenção e souber decifrar os seus mistérios.)
Jung falava da sincronicidade – teoria segundo a qual, “certas coincidências são coincidências demais para serem consideradas simplesmente assim”. Numa noite, eu estava preparando uma aula com poemas de Cecília Meireles. Quando folheava um livro, dei com uma página em que se podia ler o bonito soneto intitulado “A Balada do Soldado Batista”, poema que eu desconhecia! Sincronicidade que me causou espanto e que me fez, imediatamente, decidir que aquele livro seria do meu amigo.
Chico Xavier dizia que “ninguém entra em nossas vidas por acaso e nós não entramos na vida de alguém sem algum propósito”. Abraço todas as teorias, todos os pontos de vista, todas as explicações que quiserem me dar – búzios, tarô, baralho, bola de cristal, astrologia, psicanálise… todas elas vão convergir, eu sei, para esse encontro com essa pessoa tão especial. Reencontro de almas? A vida me ensinou a não duvidar de nada. E, se eu “reencontrei” o Batista, era porque tinha de reencontrá-lo. “Há mais mistérios entre o céu e a terra” etc., etc., etc. Amém!
No último mês de julho, ele entrou em férias. No domingo anterior à sua volta, três funcionários da boate, em três momentos diferentes, vieram me falar: “Na semana que vem, Batista está aí”. E, no dia em que ele voltou, ouvi, já na portaria, de dois seguranças: “Batista voltou hoje!”. Ri comigo mesmo e fiquei emocionado e contente por me associarem a ele. Sou privilegiado.
São tantas coisas boas que recordo agora. Conversas, risos, abraços; noites em que Batista, mesmo cansado, sempre me recebeu com um abraço afetuoso, carinhoso e atencioso. De uns dois anos pra cá – talvez mais, talvez menos – tenho ido à boate com mais disposição, porque sei que vou encontrá-lo.
Quantas madrugadas nas quais, caminhando sozinho de volta pra casa, debaixo de uma garoa fria, eu vinha pensando em tudo o que havíamos conversado! E suas palavras me faziam companhia.
Seu trabalho lá está terminando. Um ciclo está se completando para ele; outro vai se iniciar. Enquanto ele não vai para a vida que merece ter, eu fico ao seu lado, conversando, me emocionando, rindo, ouvindo e lendo as histórias desse homem que eu admiro muito. E fico pensando como tem sido bom encontrá-lo!
Ser especial não é ser notado na chegada; ser especial é deixar saudade na saída. E isso se aplica ao Batista! Ele deixará saudade naquela boate, mas fico feliz porque vai retomar a sua vida e seus projetos.
Que assim seja!
(Batista, obrigado por tudo. Sentirei muita saudade. Espero que a distância física seja só um detalhe e que ela nunca nos separe de verdade. Boa viagem, meu irmão de alma!)
2 Comments
Professor, é tão bom conhecermos pessoas! Algumas amizades serão eternas, isso é paz, que invade os nossos corações. Como diz a música do Gilberto Gil: “a paz, invadiu o meu coração”. Este é um sentimento maravilhoso, uma amizade sincera entre pessoas que se respeitam.
Bela Crônica sobre quando conhecemos alguém que nos enternece e nos acrescenta coisas boas em nossas Vidas e tão bem escrita está esta Crônica que eu imaginava na Boate observando o Cronista e o Batista.
E aonde menos esperamos encontramos Grandes e Boas Surpresas como o narrado nesta Crônica.
👏👏👏