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CARTA AOS PAIS

Em qualquer época, por qualquer motivo, a solidão e o desprezo são sempre fatais… qual a melhor definição de família? Basta ser do mesmo sangue?

 

CARTA AOS PAIS

 

                                          São Paulo, 1º de dezembro de 1986.

Prezados senhores,

Talvez cause estranhamento uma carta de uma pessoa desconhecida… não, não adianta puxarem pela memória tentando associar meu nome no verso do envelope com algum rosto familiar. Nunca estive na casa dos senhores, nunca conversamos sequer por telefone, embora minha vontade fosse procurá-los havia muito tempo. E, se não o fiz, foi porque seu filho jamais me permitiu que eu o fizesse.

Conheci José Carlos em 1981, portanto cinco anos atrás, quando ele veio trabalhar na mesma agência que eu no Banco do Estado de São Paulo, Banespa. Aprovado em concurso, passou a ser meu subordinado direto – e logo se destacou em suas funções, sendo promovido e alcançando bastante sucesso no banco.

Com o passar do tempo, José Carlos e eu fomos desenvolvendo uma amizade fora do âmbito bancário até que ele veio a conhecer minha família – esposa e duas filhas – e acabou por ser um amigo querido de todos. José Carlos começou a frequentar minha casa e, em quase todos os fins de semana, vinha jantar com a gente no sábado ou no domingo. Sempre havia um bolo de chocolate à sua espera. Como ele gostava disso! Ele era simpático, agradável, inteligente e carinhoso com todos.

O filho dos senhores, contudo, parecia-me triste, parecia-me um tanto distante e muito reservado quando o assunto era sua vida pessoal. Pouco ou nada sabíamos dele, mas isso não nos importava muito. Minha esposa era a mais curiosa e algumas vezes cometeu a indiscrição de lhe perguntar sobre sua família, seus amigos, sua vida amorosa. José Carlos era sempre muito vago, escondia-se atrás de uma suposta timidez e nós não insistíamos. Não era de nossa conta.

Certa vez, no aniversário de minha filha mais nova, José Carlos se excedeu na bebida e não o deixamos ir embora. Levei-o até o quarto de hóspedes e, enquanto eu tirava seu sapato, ele pedia desculpas “pelo vexame” na casa do chefe. Eu lhe respondi que não era mais seu chefe e que não havia do que se desculpar. Ele só precisava dormir para se curar daquele excesso. Foi quando lhe perguntei se não iria avisar os pais por dormir fora de casa…  o que ouvi então me assustou:

-Pais? Que pais? Quem põe você na rua pode ser chamado de pai e mãe? Quem não aceita a gente como a gente é pode ser chamado de pai e mãe? Só me puseram no mundo, só isso! Não são meus pais. Eles gostam do meu irmão – casado, três filhos, certinho. É dele que eles gostam.

Pegou-me pelo colarinho, olhos nos meus olhos, a voz pastosa, uma mistura do efeito do álcool com a vontade de chorar:

-Eu não tenho ninguém, meu amigo. Sou só. – e cantarolou a música de Gilberto Gil: “Eu preciso aprender a ser só / Reagir / E ouvir / O coração responder: / “Eu preciso aprender a só ser”.

 Quando fechei a porta do quarto, ainda pude ouvir um pouco de seu choro abafado pelo travesseiro. José Carlos mostrava-se como jamais havia feito em dois anos de amizade. Isso foi em 1983 portanto.

No dia seguinte, um domingo, levantou-se sem jeito e tentou despedir-se de nós. Eu e minha esposa não o deixamos ir: fizemos questão de que ele passasse o domingo em nossa casa e, caso sentisse vontade, que falasse sobre o que o entristecia.

Bem, calculo que os senhores saibam essa parte da história. Depois do almoço, as crianças foram para a casa dos avós, e José Carlos resolveu explicar o que havia dito na noite anterior. E falou. Falou sobre rejeição, falou sobre brigas constantes e surras por parte do pai – principalmente quando entrava na adolescência -, falou sobre sentir-se um estranho na casa dos senhores, falou, enfim, de quando foi expulso porque “vivia em desacordo com as leis de gente decente”.

A partir dessa conversa, sua amizade comigo e minha esposa se tornou mais forte. Ele pôde se abrir e se mostrar como nunca antes tinha feito. Via-se a vergonha em seus olhos – e atribuo esse sentimento à educação(?) que os senhores deram a ele… e que o fez se sentir inferior a qualquer ser humano pelo resto de sua vida.

Sim, escrevo com indignação. E, se não quiserem continuar a ler esta carta, rasguem-na. Pouco ou nada ela acrescentará a vocês. Eu preciso, porém, continuar a escrevê-la.

Há dois anos, José Carlos adoeceu vítima do HIV. Foi internado no Emílio Ribas e de lá saiu e entrou várias vezes. A cada alta médica, nossas esperanças se renovavam, e achávamos que era para não mais voltar àquele hospital. O filho de vocês sofreu muito para uma pessoa tão boa…

Nos piores dias da doença, ele delirava com uma febre muito alta e chamava pelos pais, os mesmos pais que ele negara ter naquela noite de sua bebedeira. Eu não sabia o que fazer, pois não tinha o endereço de vocês e, além disso, José Carlos pedia, em seus momentos de lucidez, que eu não os avisasse.

Nunca vi um homem mais solitário do que ele. Não tinha a família por perto, não tinha um namorado e nós éramos seus únicos amigos. O grau de vergonha de José Carlos era tamanho que ele preferia morrer a ver os pais ao lado de sua cama no hospital: isso me foi dito por ele numa noite que passei ao seu lado num quarto repleto de pessoas com a mesma enfermidade.

Ontem, José Carlos morreu. Na cremação – seu último desejo -, compareceram apenas as pessoas do banco, além de mim e de minha mulher… muito pouco para um rapaz tão correto e de alma tão boa como pudemos constatar ao longo desses cinco anos.

Não sou médico, mas constatei que o desprezo e a ignorância matam mais que a Aids.

Tivemos que ir ao seu apartamento. Com a autorização da polícia, entramos e encontrei o endereço de vocês numa agenda.

Não sei como  os senhores viverão com a notícia que lhes dou por meio desta carta. Não os conheço e não posso avaliar suas emoções… mas sou pai também e, assim, quero acreditar (preciso acreditar!) que haja algum resquício de arrependimento nos corações dos senhores. Caso contrário, devo admitir que não mereciam o lindo (em todos os sentidos) filho que tiveram.

Se quiserem entrar em contato, incluo um cartão com meus telefones. 

Passem bem e tenham um Feliz Natal!

                                               César Augusto Dias

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

4 Comments

  1. Baltasar Pereira disse:

    Linda e triste Crônica. Fiquei ansioso em acabar de ler a mesma . Senti a angústia de José Carlos na narrativa desta Crônica. Triste Realidade que ocorre em qualquer parte do Mundo. O importante é o Ser Humano e sua essência e não como vive sua Sexualidade. Triste e Bela Crônica.

  2. Clarice keri disse:

    História bem escrita, tocante

  3. O desprezo é FATAL! Família pra mim é tudo, mas não basta ser sangue, não. Um amigo querido sempre me disse, ” Quem tem amigo, tem tudo”, é bem por aí.

  4. Bernadete disse:

    Muito lindo. Muito emocionante.
    E muito triste também.
    Infelizmente, ainda hoje falam da “cura gay”!

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