A intensa correspondência entre Jorge Amado e sua esposa, Zélia Gattai, inicia-se com o exílio do escritor baiano, em 1948, devido à sua militância política. A primeira carta do autor de “Gabriela, Cravo e Canela” já foi escrita no navio que o levava à França, obviamente retratando os efeitos da separação entre Jorge e sua família, além da tensão do período pós-guerra.
Segundo João Jorge, um dos filhos do casal, a carta abaixo é manuscrita (no original), e “descreve o voo da Air France que o levou de Paris a Praga, para o Congresso Mundial da Paz”. Nela, constata-se como a aviação era perigosa e precária à época, precariedade que justificava o medo que o escritor sempre teve de voar.
Jorge Amado chamava a esposa carinhosamente de “Zé”.
Jorge Amado (1912-2001), nascido em Itabuna, Bahia, foi um dos mais famosos e traduzidos escritores brasileiros de todos os tempos, sendo o autor mais adaptado para o cinema, teatro e televisão. É responsável por sucessos como “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, “Tenda dos Milagres”, “Tieta do Agreste”, “Gabriela, Cravo e Canela” e “Capitães da Areia”.
Fez parte da intelectualidade comunista do País, tendo sido exilado por sua militância. Filiado ao Partido Comunistas Brasileiro (PCB) e eleito deputado federal em 1946, teve o mandato cassado quando a legenda foi posta na ilegalidade pelo governo de Gaspar Dutra.
Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, em 1961, ocupando a cadeira 23.
Zélia Gattai (1916-2008) nasceu em São Paulo e foi uma escritora, fotógrafa e memorialista brasileira, tendo também sido expoente da militância política nacional durante quase toda a sua longa vida. Ficou casada com Jorge Amado por cinquenta e seis anos, até a morte dele. Seu livro mais famoso é “Anarquistas, graças a Deus”, de 1979, tendo sido adaptado para uma minissérie da Rede Globo.
Em 2001, também foi eleita para a Academia Brasileira de Letras, para a cadeira 23, anteriormente ocupada pelo marido.
Praga, 03 de março de 1949.
Zélia:
São 5h da tarde e chego do almoço. Te passei um telegrama assim que cheguei aqui e te havia enviado outro de Frankfurt ontem. Péssima a viagem de ontem. Estamos vivos por milagre. Saímos de Paris às 9h e, cerca de meio-dia, a “aeromoça” nos comunicou que íamos descer em Frankfurt porque “havia mau tempo na rota”. Descemos. Ao descer, por milagre o avião não se choca com outro que partia. Soubemos então que baixamos não pelo mau tempo (o tempo era excelente), mas porque um motor estava falhando e o rádio não funcionava. Ficamos no aeroporto de Frankfurt (zona alemã de ocupação americana) até às 3h da tarde, quando novamente nos embarcaram, dizendo que já estava consertado.
Meia hora de voo e eis que um passageiro dá um grito: Fogo no motor! E não era no motor consertado, e sim noutro ao lado (o avião era um quadrimotor da Air France). Confusão, o piloto parou esse motor e voltamos. Com mais ou menos cinco minutos de voo de volta, um outro motor (o que parara antes) começa novamente a falhar. Aos dez minutos, estávamos reduzidos a dois motores, ambos do mesmo lado do avião que voava inteiramente de lado, baixíssimo sobre as montanhas que separam a Tchecoslováquia da Alemanha, e com a marcha reduzida. Foi uma meia hora dura, mas conseguimos aterrissar em Frankfurt outra vez, onde ficamos no aeroporto até às 7h30 da noite, quando nos conduziram a uma aldeia vizinha, a um hotel onde comemos e dormimos.
Às 7h da hoje, nos acordaram, novamente o ônibus e outra vez o aeroporto. Às 11 e tanto, chegou outro avião de Paris, e às 12h30min partimos para Praga, aonde chegamos às 2h30min. Uma hora depois, estávamos na cidade (Hotel Flora, veja o endereço acima), e às 4h nos levaram para comer, almoço do qual estou voltando. Ainda não vi Kuchvalek, mas ele já me falou por telefone, vai vir às 7h.
Dois dias perdidos. Amanhã, começa o Congresso. Penso poder voltar na próxima 3ª feira. Estou cansadíssimo.
Tenho saudade de ti e do Bandido Querido (o filho João Jorge).
As bananas viraram creme nessas atrapalhações. No tal avião, além de Mike Gold, vinha também Fadéiev.
Bem, Zé, vou terminar por aqui. Te escreverei mais comprido depois. Vou ver se tomo um banho quente antes do jantar.
Todo o carinho e toda a saudade do
Jorge
In: AMADO, João Jorge (org.) – Toda a saudade do mundo – A Correspondência de Jorge Amado e Zélia Gattai – Do exílio europeu à construção da Casa do Rio Vermelho (1948-1967). 1ª ed., São Paulo, Companhia das Letras, 2012, pp. 59-60.
3 Comments
Como é gostoso termos acesso a estas cartas de vários escritores,os quais vemos como Humano eram os mesmos. Um grande Escritor ,Jorge Amado e sempre que li suas Obras, me vinham as imagens de seus personagens riquíssimos de Psicologia com seus Defeitos e acertos.
Zelia,outra escritora que me chamou atenção pelo seu livro” Arnarqiistas, Graças a Deus”.
A carta nos mostra como eram atemorizantes as viagens de antigamente.
Professor, que delicia de leitura e mais conhecimentos! Desconhecia algumas coisas sobre o casal. Obrigado por compartilhar.
Olá Prof Vitor
Bela crônica. Muito medo, angústia, tensão e cansaço. Uma linguagem coloquial de Jorge Amado. Carta interessante!!!!!
Parabéns