Fernando Sabino conta que Rubem Braga conheceu Clarice Lispector em Nápoles, durante a guerra, pois o marido da escritora, Maury Gurgel Valente, servia lá como diplomata. Quando retornaram ao Brasil, Rubem apresentou Clarice a Fernando – e daí surgiu uma amizade entre os dois, pautada pela admiração e pelo respeito mútuos, que duraria até 1977, quando Clarice morreu. Nas palavras de Fernando, “nós nos tornamos amigos – só não digo “inseparáveis”, porque outras viagens nos separaram, cada um para o seu lado. Mas a amizade continuou, através das cartas ‘perto do coração’, de 1946 a 1969, com uma frequência só interrompida quando nos encontrávamos ambos no Rio”.
Na primeira carta que reproduzo abaixo, Clarice relata sua leitura de “O Encontro Marcado” (1956), considerado por muitos a obra-prima de Fernando Sabino, livro que marcou profundamente a escritora e toda uma geração.
Na segunda carta – na verdade, um bilhete escritor por Clarice à amiga Lygia Fagundes Telles –, a escritora de “A Hora da Estrela” faz considerações sobre a então escassa presença feminina na Academia Brasileira de Letras. Curioso notar que, anos depois, todos os desejos expressos por Clarice se concretizaram: Rachel de Queiroz foi a primeira mulher na ABL, em 1977; Dinah Silveira de Queiroz foi eleita em 1980; Lygia entrou em 1985, e Nélida, em 1989. Esta última tornando-se a primeira mulher a presidir a instituição.
Clarice Lispector (1920-1977) nasceu em Chechelnyk, na Ucrânia, tendo vindo com a família para o Brasil em 1922. De família judaica russa, Clarice naturalizou-se brasileira e aqui notabilizou-se como uma das escritoras mais importantes do país no século XX. Escreveu romances, contos e ensaios, além de ter trabalhado no jornalismo como entrevistadora e tradutora. Seus personagens, embora comuns, frequentemente atravessam algum processo de epifania (revelação) que transforma tanto suas vidas quanto a eles próprios. Alguns de seus livros mais famosos são “Laços de Família” (contos), “Perto do Coração Selvagem”, “A Paixão Segundo G.H” e “A Hora da Estrela” (romances). Foi casada com o diplomata Maury Gurgel Valente, pai dos dois filhos da escritora, Pedro e Paulo.
Fernando Sabino (1923-2004) nasceu em Belo Horizonte; foi escritor, jornalista e editor. Na juventude, escrevia para revista mineira Argus, na qual participava de concursos de contos, que vencia com frequência. Foi nadador do Minas Tênis Clube, onde bateu diversos recordes de nado de costas, tornando-se campeão sul-americano dessa modalidade em 1939. No mesmo ano, ganhou o segundo lugar na Maratona de Português e Gramática Histórica. Começou a cursar a faculdade de Direito em 1940. Depois de formado, morou dois anos em Nova York, exercendo função burocrática do consulado brasileiro no Estados Unidos. Suas principais obras são “O encontro marcado”, “O homem nu”, Deixa o Alfredo falar”, “O grande mentecapto”, “A falta que ela me faz” e centenas de crônicas publicadas nos principais jornais e revistas do País.
Lygia Fagundes Telles (1918-2022) nasceu em São Paulo e é conhecida como “a dama da literatura brasileira”, considerada por acadêmicos, críticos e leitores uma das mais importantes e notáveis escritoras brasileiras do século XX. Foi advogada, romancista e contista, explorando temas como a morte, o amor, o medo, a loucura e a fantasia. Ingressou na Academia Paulista de Letras em 1982 e, em 1985, na Academia Brasileira de Letras. No mesmo ano, tornou-se membro da Academia de Ciências de Lisboa. Em 2005, Lygia recebeu o Prêmio Camões, maior homenagem concedida a escritores de países de língua portuguesa. Entre sua vasta obra, destacam-se “Ciranda de Pedra”, “Antes do Baile Verde” e “As Meninas”.
Washington, 8 de janeiro de 1957.
Fernando,
Seu livro me espantou. Comecei lendo suas frases cortantes, que você por assim dizer não comenta e que parece ter a intenção de não dizer nada mais do que dizem, comecei sem saber aonde elas iriam dar. Perguntei-me de início aonde você pretendia levar o leitor e se levar. O que me espantou é que – não sei em que momento nem como – me vi inesperadamente dentro do livro, entendendo o que você queria, experimentando tudo, embora não soubesse ainda até onde você iria e vivendo com a velocidade de staccato com que o livro é escrito, esse modo de quem fala com a garganta seca.
Espantou-me também o “tempo” dele. É angustiante a rapidez com que ele decorre – sem que se possa fazer nada. O livro me deu grande tristeza. Eu não queria que fosse tão assim, tão rolando para a salvação ou para a perdição, e tudo por questão de pendurar-se um segundo a mais ou a menos num minuto, tudo às vezes questão de mão recusada ou dada, tudo às vezes por causa de um passo a mais ou a menos.
É curioso como o seu livro e o meu têm a mesma raiz. Talvez você não ache isso ou sinta. Eu acho. Só que o seu termina com uma luz mais aberta – o encontro marcado se realiza. Cada vez que penso no livro – e tenho vivido com ele nesses últimos dias –, gosto mais. O envolvimento, ele é sensível, é feito por acumulação, por estrangulamento gradativo que vem de todos os lados. Sei que estou usando palavras que talvez lhe soem fortes demais (tive uma noite e insônia, acredite…), mas, Fernando, foi assim que senti: encostada à parede, me deu um desespero que me deu vontade de lhe dizer: Fernando, vamos mentir que não é assim. Você dizer que não há problema é dizer que não há solução. Mas, Fernando, o fato de você ter escrito este livro e eu ter escrito o meu não é o começo da maturidade? Acho que você não teria conseguido o livro se não o tivesse escrito como o escreveu. Gostei muito, muito. Se bem que preferia que você não fosse a pessoa capaz de escrevê-lo. Mas você foi, e fico contente. Li por assim dizer de uma só vez. E não creio que se consiga interromper a leitura. Depois que li, Maury está com ele o tempo todo.
Parece qualidade fora de moda, essa de um livro “prender”. Acho qualidade essencial, invejável. Livro realizado é livro que não se quer largar. A impressão visual que tenho dele e de linhas retas e finas se entrecruzando e se cortando. A primeira pausa, a primeira mesmo, vem exatamente e apenas no fim. E foi tão bonito – enfim, a grande pausa. E minha impressão visual – sei que vai lhe parecer banalidade – mas foi de luz. Amém, Fernando, amém. Para nós todos. Nunca me senti tanto pertencendo a uma “geração”. Pela primeira vez, talvez, senti a palavra geração em outro sentido. E veja, Fernando, que isso veio de algo mais, no seu livro, do que de fatos e ambientes, porque minha vida não teve esses fatos nem esses ambientes. Vem de algo mais, de alguma coisa essencial que você pegou, e que me deu essa impressão de “estarmos todos no mesmo barco”. E que me deu a certeza de um encontro marcado, e a esperança.
Seu livro, tão duro, é muito bonito. O modo como às vezes um personagem sai de cena, com uma mudez, uma determinação. O ritmo todo do livro é muito bonito. E a história é “subjetiva” sem a preguiça do “subjetivo”. O livro todo parece filmado em luz de rua, sem maquiagem. Por isso dá às vezes a impressão desconcertante de falta absoluta de “literatura” – e então se sente que este é o modo até sofisticado (sofisticado como contrário de “naïve”, ingênuo) de literatura. O estratagema é quase uma ausência de estratagema. Dá a impressão de que você não parou um instante para achar uma “solução literária”, que nem uma vez você se viu diante de um impasse, diante de uma pergunta assim: que jeito dou nisso?
Eu queria ser mentalmente mais organizada para poder lhe escrever uma carta direta, pondo em palavras impressões que tive, nem sempre fugitivas, mas difíceis em mim de atingirem o plano das palavras. A verdade, Fernando, é que, depois desse livro, ainda sou mais sua amiga. Mas a verdade também é que, se não tivesse gostado tanto, também seria.
Me escreva, diga como o livro está sendo recebido.
Saudade da
Clarice
(Sem data), novembro de 1977.
Lygia,
Você é tão doce e escreve tão bem. Fiquei muito contente com o fato de Raquel de Queiroz entrar na ABL. Se eu tivesse poder, daria a segunda vaga a Dinah Silveira de Queiroz, que conseguiu para a mulher brasileira um lugar ao sol.
Embora eu não deseje morte para ninguém, sugiro que a terceira vaga seja preenchida por Lygia Fagundes Telles. Estão achando que sugiro mulheres demais? Não, é que a Academia Brasileira de Letras tem uma grande dívida para com as mulheres. E, se Nélida Piñon estivesse na Academia, esta sofreria uma modificação revolucionária, pois Nélida tem coragem para renovar.
Antes de terminar, quero dizer que, apesar do grande respeito que tenho pela Academia, eu jamais aceitaria entrar nela.
Clarice
In: SABINO, Fernando – Cartas perto do coração – Fernando Sabino e Clarice Lispector. 9ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Record, 2024, pp. 213-215.
In: VASQUEZ, Pedro (org.) – Clarice Lispector – Todas as Cartas. 1ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Rocco, 2023, p. 878.
2 Comments
Professor, das 11 Crônicas – “CARTAS – O OUTRO LADO DOS ESCRITORES” publicadas até agora, as escritoras que mais me identifiquei foram Cecília Meireles e Clarice Lispector. A leitura é prazerosa e me fez “viajar”, além do aprendizado.
Olá Prof Vitor
Que maravilhosa análise do livro Encontro Marcado de Fernando Sabino. Sensacional!!!!!
Muito boa crônica. Opiniões femininas apresentadas com classe.
Parabéns