Em 1923, Monteiro Lobato abriu as portas de sua editora para o escritor Graça Aranha e o incentivou a publicar o livro “Machado de Assis & Joaquim Nabuco – Correspondência”.
O professor António Carlos Secchin, no prefácio da 3ª edição, escreve que essa troca de cartas foi muito além da conversa protocolar e íntima entre amigos – abordou questões importantes sobre o papel do intelectual e do escritor entre o fim do Império e os primórdios da República Velha, além da criação da Academia Brasileira de Letras.
Joaquim Nabuco contava apenas 15 anos quando escreveu a primeira carta a Machado, em 1º de fevereiro de 1865; Machado tinha 26. Nabuco era aluno do colégio Pedro II e escrevia poesias que recitava em saraus literários. Nessa primeira carta, Nabuco respondia à saudação que Machado lhe fizera em 31 de janeiro do mesmo ano sobre um desses recitais. A correspondência se intensificou e, com o passar do tempo, os dois tornaram-se grandes amigos e confidentes.
Nas duas cartas de Machado que reproduzo abaixo, temos dois momentos distintos e marcantes na vida do Bruxo do Cosme Velho.
Na primeira, ele escreve ao amigo, tomado de tristeza, pesar e luto pela morte de Carolina Machado (em 20 de outubro de 1904), esposa e companheira durante 35 anos. Machado está respondendo a um telegrama de Nabuco por conta do falecimento de Carolina.
Na outra, a última carta que envia a Joaquim Nabuco, pouco menos de dois meses antes de morrer, Machado escreve sobre o “Memorial de Aires”, seu último livro, e comenta, a respeito de uma candidatura na Academia Brasileira de Letras que, “no momento não há vaga”, e faz uma profecia que, infelizmente, se confirmará.
De fato, sua morte, em 29 de setembro do mesmo ano, abriu a vaga, ocupada por Lafayete Rodrigues Pereira, que defendera Machado contra os ataques de Silvio Romero.
Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo (1849-1910) foi político, diplomata, historiador, jurista, orador e jornalista. Embora nascido em uma família escravocrata, ficou famoso, entre outras razões, por lutar contra esse sistema, chegando a pedir ajuda ao papa Leão XIII para dar fim à escravidão no Brasil.
Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) é considerado o maior escritor brasileiro de todos os tempos. Escreveu romances, contos, crônicas, peças e poesias. Foi o introdutor do Realismo no País com o livro “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, em 1881. Fundou com um grupo de intelectuais a Academia Brasileira de Letras, em 1897, sendo eleito por unanimidade o primeiro presidente da instituição.
Rio de Janeiro, 20 de novembro de 1904.
Meu caro Nabuco,
Tão longe, em outro meio, chegou-lhe a notícia da minha grande desgraça, e você expressou logo a sua simpatia por um telegrama. A única palavra com que lhe agradeci (“Obrigado”) é a mesma que ora lhe mando, não sabendo outra que possa dizer tudo o que sinto e me acabrunha. Foi-se a melhor parte da minha vida, e aqui estou só no mundo. Note que a solidão não me é enfadonha, antes me é grata, porque é um modo de viver com ela, ouvi-la, assistir aos mil cuidados que essa companheira de 35 anos de casados tinha comigo; mas não há imaginação que não acorde, e a vigília aumenta a falta da pessoa amada. Éramos velhos, e eu contava morrer antes dela, o que seria um grande favor; primeiro, porque não acharia ninguém que melhor me ajudasse a morrer; segundo, porque ela deixa alguns parentes que a consolariam das saudades, e eu não tenho nenhum. Os meus são os amigos, e verdadeiramente são os melhores; mas a vida os dispersa no espaço, nas preocupações do espírito e na própria carreira que a cada um cabe. Aqui me fico, por ora na mesma casa, no mesmo aposento, com os mesmos adornos seus. Tudo me lembra a minha meiga Carolina. Como estou à beira do eterno aposento, não gastarei muito tempo em recordá-la. Irei vê-la, ela me esperará.
Não posso, meu caro amigo, responder agora à sua carta de 8 de outubro; recebia-a dias depois do falecimento de minha mulher, e você compreende que apenas posso falar deste fundo golpe.
Até outra e breve; então lhe direi o que convém ao assunto daquela carta, que, pelo afeto e sinceridade, chegou à hora dos melhores remédios. Aceite este abraço do triste amigo velho
Machado de Assis
Rio de Janeiro, 1º de agosto de 1908.
Meu querido Nabuco,
Lá vai o meu “Memorial de Aires”. Você me dirá o que lhe parece. Insisto em dizer que é o último livro; além de fraco e enfermo, vou adiantado em anos, entrei na casa dos setenta, meu querido amigo. Há dois meses estou repousando dos trabalhos da Secretaria, com licença de ministro, e não sei quando voltarei a eles. Junte a isso a solidão em que vivo. Depois que minha mulher faleceu, soube por algumas amigas dela de uma confidência que ela lhes fazia; dizia-lhes que preferia ver-me morrer primeiro por saber a falta que me faria. A realidade foi talvez maior do que ela cuidava; a falta é enorme. Tudo isso me abafa e entristece. Acabei. Uma vez que o livro não desagradou, basta como ponto final.
Recebi os seus discursos (sobre Camões, proferidos nos Estados Unidos, em inglês) e felicito-o por todos. O Jornal do Comércio publicou os três. Dei os da Academia à Academia. Já lá temos um princípio de biblioteca, a cargo especial de Mário de Alencar, e eles ficam nela arquivados. Obrigado por todos e particularmente pelo que trata do lugar de Camões na literatura. É bom, é indispensável reclamar para a nossa língua o lugar que lhe cabe, e para isso os serviços internacionais que se prestarem não serão menos importantes que os puramente literários. Realmente é triste ver-nos considerados, como você nota, em posição subalterna à língua espanhola. Você será assim mais uma vez o embaixador do nosso espírito. Um abraço pelas distinções que aí tem recebido e que são para o nosso Brasil inteiro.
Não é verdade que a nossa gente tenha esquecido você; falamos muita vez a seu respeito e recordamos dias passados. Se não lhe escrevi mais, é porque a vida agora é absorvente, com as mudanças da cidade e afluência de estranhos. Tudo se prepara para a Exposição, que abre a 11.
A Academia vai andando; fazemos sessão aos sábados, nem sempre e com poucos. A sua ideia relativamente ao José Carlos Rodrigues é boa. Falei dele ao Graça e ao Veríssimo, que concordam; mas o Graça pensa que é melhor consultar primeiro o José Carlos; parece-lhe que ele pode não querer; se quiser, parece fácil. Não há vaga, mas quem sabe se não a darei eu?
Releve-me essas ideias fúnebres; são próprias do estado e da idade. Peço-lhe que apresente os meus respeitos a Mme. Nabuco e a todos, e receba para si a saudade do velho amigo de sempre
Machado de Assis
In: ARANHA, G. Machado de Assis & Joaquim Nabuco – Correspondência. 3ª edição, Rio de Janeiro, Top Books, 2008, pp. 126-127, 158-159.
2 Comments
Professor, estou impressionado com as publicações destes escritores, mais do que um aprendizado para mim.
O que me chama a atenção são as escritas, impressionante o uso das palavras, como por exemplo: “se não lhe escrevi mais, é porque a vida agora é absorvente, com as mudanças da cidade e afluência de estranhos”.
Obrigado por compartilhar.
Olá Prof Vitor
Excelente crônica que contempla essas maravilhosas cartas. Quanta delicadeza, afeto e dedicação entre estes dois pilares da literatura brasileira.
Parabéns