O bonito livro “Cartas Brasileiras”, organizado por Sérgio Rodrigues, informa que a poetisa Hilda Hilst foi apresentada a Carlos Drummond de Andrade por Lygia Fagundes Telles, em 1952. Hilda estava com 22 anos. Depois desse encontro, Drummond teria se apaixonado por Hilda, uma moça bonita que despertou interesse em muitos homens: “A paixonite era rotina na história da bela, rica, talentosa e boêmia escritora que, em 1963, trocaria a vida mundana pelo retiro em sua Casa do Sol, em Campinas (SP), na fazenda da família. Lá, até morrer, Hilda se dedicaria à literatura, compondo uma obra intensamente autoral”, segundo Sérgio.
Hilda e Lygia se conheceram na Faculdade de Direito da USP (Largo São Francisco) e foram amigas até o fim.
A carta abaixo retrata um pouco o momento de transformação de Hilda – uma interiorização e um olhar para a vida e para a espiritualidade.
A saudade – um sentimento universal e atemporal – seria também um tema abordado pela escritora nesta sensível carta ao poeta mineiro.
Hilda de Almeida Prado Hilst (1930-2004) nasceu em Jaú (SP), foi poetisa, dramaturga e cronista. É reconhecida como uma das maiores escritoras em língua portuguesa do século XX. Seus temas mais frequentes foram misticismo, insanidade, erotismo e libertação sexual feminina. Segundo ela mesma, seu trabalho “sempre buscou retratar a difícil relação entre Deus e o homem”.
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) nasceu em Minas Gerais, foi poeta, cronista e contista. É considerado um dos maiores poetas brasileiros do século XX. Seus principais temas foram as questões existenciais, como o sentido da vida e da morte, além das questões sociais e políticas de seu tempo, chegando também a compor versos intensos e doloridos sobre sua terra natal (Itabira) e sua família.
São Paulo, 10 de agosto de 1962.
Drummond, poeta querido,
Muito obrigada pelas boas coisas que me disse. Tenho sempre muita saudade de você e espero sempre que um dia a gente possa conversar longamente de corpo presente. Como seria bom! Tantas coisas se fizeram dentro de mim, tantas se diluíram e tantas morreram. Cresci e mastiguei minhas raízes como era preciso. Tenho procurado tanto, Carlos. O que escrevo sempre me parece pequeno, pretensioso e inútil. Mas continuo. E continuo também a amar as gentes, a acreditar como se tivesse nascido logo agora, neste instante. Ou como se estivesse para morrer porque acredito que na morte é mais fácil amar e perdoar. Alguns bons amigos que tenho repetem sempre que tenho uma debilidade anormal porque quero bem até aqueles que não amam, e que esse amor em mim é pretensa humildade. No fundo, dizem eles, vontade de parecer melhor que os outros, bondade maldosa.
Será isso, não sei. Li um homem que me impressionou como nunca: o grego Nikos Karantzakis. Você conhece? O seu livro “Lettres au Grecco” fez com que muitas coisas se iluminassem, fiquei tomada de vida, de esperança e de amor. Foi incrível a luta, a fé e o caminho desse homem. Seus deuses, Cristo, Buda, Lênin, são todos um só, uma grande harmonia, uma grande chama. O anjo, ele diz, nada mais é do que um demônio enriquecido e a mais torturada das criaturas de Deus é Lúcifer. E, se você perguntar quem é o filho pródigo pelo qual o pai mata um belo e gordo carneiro, ele dirá: Lúcifer! Ah, Carlos, o homem é de arrepiar os cabelos e tudo mais. E o mais maravilhoso: ele é poeta dos mais altos. Ainda não consegui o livro de poemas, mas dizem por aí que é a mais bela poesia acontecida.
Carlos, escreva para mim. Sei que você é ocupado etc., mas é preciso que a gente se fale um pouco, algumas vezes, para matar tanta saudade.
Vejo sempre Lygia e com muito amor falamos sempre de você e de sua grande poesia.
O carinho e o abraço da
Hilda
In: RODRIGUES, S. (org.), Cartas Brasileiras – Correspondências históricas, políticas, hilárias e inesquecíveis que marcaram o país. 1ª edição, São Paulo, Companhia das Letras, 2017, pp. 120-121.
2 Comments
Professor, que carta maravilhosa! Por favor, continue nos presenteando com essas pérolas, isso enriquece mais o meu conhecimento.
Olá Prof Vitor
Elegante e sensível apresentação de Hilda Hilst.
Respeitosa e carinhosa sua carta a Drummond
Parabéns