Reproduzo abaixo uma carta bastante simples e carinhosa de nosso maior cronista à amiga Clarice Lispector.
Seria somente mais uma carta entre dois (dos maiores) escritores de nossa literatura, mas o que me chama a atenção são os registros de uma época. Em seu texto, Rubem Braga faz alusão à extinta revista “Manchete”, da Editora Bloch, publicação que marcou toda uma geração de leitores. (Lembro muito de minha mãe comprando a revista em bancas de jornais, principalmente depois dos Carnavais, para ver as fotos dos desfiles das escolas de samba do Rio.)
Outro ponto interessante da carta de Rubem vem a ser a (eterna) alta do dólar, sempre dificultando a vida dos brasileiros que gostavam e gostam de viajar. Um dólar a Cr$45,00 devia ser uma cotação bem alta para nós, brasileiros. E sofremos com isso até hoje.
Por fim, como professor e intelectual, não posso deixar de notar e invejar uma época em que Rubem Braga escreve para Clarice Lispector, falando de Graciliano Ramos (infelizmente, de sua morte) e do novo livro de Cecília Meireles! Meu Deus! Como era culturalmente rico este país! Parafraseando um verso da própria Cecília: em que espelho ficou perdida a nossa face?
Rubem Braga (1913-1990) nasceu em Cachoeiro do Itapemirim (ES), é considerado nosso maior cronista, tendo começada a escrever no jornalismo profissional aos 15 anos. Formou-se em Direito em 1932, mas jamais exerceu a profissão. Nesse mesmo ano, cobriu a Revolução Constitucionalista deflagrada em São Paulo. Seu primeiro livro de crônicas é de 1936 – “O Conde e o Passarinho”. Durante a II Guerra Mundial, foi correspondente de guerra com a Força Expedicionária Brasileira. Dono de um estilo poético, suas crônicas descrevem com sensibilidade e alguma melancolia o quotidiano de nossa gente. Segundo o professor e crítico Afrânio Coutinho, Rubem “é um grande escritor que entra para a história literária exclusivamente como cronista”.
Clarice Lispector (1920-1977) nasceu em Chechelnyk, na Ucrânia, tendo vindo com a família para o Brasil em 1922. De família judaica russa, Clarice naturalizou-se brasileira e aqui notabilizou-se como uma das escritoras mais importantes do país no século XX. Escreveu romances, contos e ensaios, além de ter trabalhado no jornalismo como entrevistadora e tradutora. Seus personagens, embora comuns, frequentemente atravessam algum processo de epifania (revelação) que transforma tanto suas vidas quanto a eles próprios. Alguns de seus livros mais famosos são “Laços de Família” (contos), “Perto do Coração Selvagem”, “A Paixão Segundo G.H” e “A Hora da Estrela” (romances). Foi casada com o diplomata Maury Gurgel Valente, pai dos dois filhos da escritora, Pedro e Paulo.
Rio, 23 de maio de 1953.
Clarice:
Felicidades para você, Maury, Pedro e Paulo, com saudações especiais para este, que é motivo, ou pretexto, da carta.
Nosso “Comício”, você viu, morreu assim que Tereza Quadros partiu. Sem a influição sutil de sua presença na cidade, o pobre jornalzinho se foi. Não o choremos, que morreu como nasceu, muito vivo, desleixado, alegre, às vezes, malcriado, no fundo talvez sério, em todo caso sempre livre. A gente que trabalhava aqui se espalhou, uma parte foi para a Manchete, que melhorou muito, outra parte foi fazer Flan, do Samuel Wainer, que deve sair neste mês.
Meio desempregado, enfrentei o verão (o maior de que tenho lembrança, e continua ainda) em meu novo e pequeno apartamento, e me entreguei à praia, ao uísque e aos levianos amores com estranha voracidade. Agora, estou um tanto cansado – inclusive do Rio e do apartamento – e crivado de dívidas. Para conjurá-las em parte vou fazer um livro de crônicas (“A Borboleta Amarela”) do qual tirarei uma edição de luxo a 1 conto o exemplar. O livro está sendo feito e ilustrado pelo Carybé, na Bahia, o que quer dizer que sairá mesmo bonito. Pagando uma parte das minhas dívidas, através dessa espécie de tungação de meus leitores mais burgueses, espero ficar um pouco mais livre, poder viajar. Vamos ver se o dólar baixa, está a Cr$45,00 hoje! Em último caso, viajarei pelo Brasil, o que sempre me agradou.
Gostei muito do Raul De Vicenzi, que andou por aqui. Você conhece a Vera Nascimento? Tenho muita saudade dela e gostaria de lhe escrever, mas não sei para que endereço.
Recebi carta do Lauro Escorel. Por favor, diga a ele que farei o possível, mas praticamente nada se pode fazer antes de ele chegar. Em todo caso, tocarei no assunto com o Paulo Bittencourt. De qualquer modo, o meio de imprensa está muito melhor, financeiramente, agora, do que quando ele saiu daqui. Abraço pra ele e Sarita.
Meu filho fez 15 anos, está forte, teve boas férias e com mania de aviação. Zora vai bem. Graciliano Ramos foi enterrado sábado. Morto, era completamente igual a Dante Alighieri.
Diga o que interessa a você aqui – livros, recortes de jornal, revistas, o que for, que mandarei. Para mim, é fácil, pois tenho uma secretária e um boy. Não faça mesmo nenhuma cerimônia, e transmita aos amigos citados acima – e ao prezado Lolô – este oferecimento. E me conte a vida de você aí, em Washington – o que faz, o que pensa. Agora, parece que já posso entrar nos States (nova orientação do Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP) e não deixarei de fazê-lo na primeira chance, que talvez seja uma viagem ao Japão, via San Francisco (inauguração de uma via aérea Tóquio-Rio, para a qual fui convidado, mas o dia ainda não está marcado). Isso são planos vagos, pois, como disse acima, estou praticamente preso ao Rio por dívidas – das quais não me arrependo, pois passei uma boa, alegre temporada, que me fez bem.
Mas vejo que estou chateando você com meus problemas e planos. Dizem que o livro de Cecília Meireles* é uma beleza, ainda não li. Você o recebeu? Diga, que mandarei, se você quiser. Tati vai bem, trabalha muito, parece que tem um discreto amor, o que é menos mal; Suzana passou por uma cirurgia e eu a “abafei” completamente de emoção mandando-lhe umas orquídeas para a casa de saúde. Ela e Pedro vão bem.
Tudo isso, Clarice, é para lhe dizer do meu afeto e saudade. Escreva, por favor. Grande abraço para o Maury.
Rubem
Rubem Braga
Rua Presidente de Morais, 599, ap. 501
Ipanema – Rio – 27-7174
*Pelo ano, “Romanceiro da Inconfidência”.
In: MONTEIRO, Teresa (org). CORRESPONDÊNCIAS – CLARICE LISPECTOR. 1ª edição, Rio de Janeiro, Ed. Rocco Ltda., 2002, pp. 196-197.