O poeta Carlos Drummond de Andrade e o colunista político Carlos Castello Branco possuíam bastantes amigos em comum, mas eles mesmos nunca se deram bem. Castello Branco, quase 20 anos mais jovem que Drummond, acreditava que o desentendimento e o afastamento se deviam a uma crônica em que criticava a participação do poeta no Congresso Brasileiro de Escritores, em 1946.
Trinta anos depois, as palavras de carinho de Drummond e uma possível reconciliação viriam com uma carta na qual o poeta lamentava e expressava seu pesar pela morte do filho mais velho de Castello, Rodrigo, aos 25 anos.
Ironia das ironias, Drummond passaria pela mesma dor, 11 anos depois, em 1987, com a morte de sua filha, Maria Julieta – perda da qual jamais se recuperou, vindo a falecer apenas 12 dias após a morte desta.
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) nasceu em Minas Gerais, foi poeta, cronista e contista. É considerado um dos maiores poetas brasileiros do século XX. Seus principais temas foram as questões existenciais, como o sentido da vida e da morte, além das questões sociais e políticas de seu tempo, chegando também a compor versos intensos e doloridos sobre sua terra natal (Itabira) e sua família.
Rio, 20 de maio de 1976.
Castello,
Acabo de saber, por uma amiga comum, que foi notada, na correspondência dirigida a você pela perda de seu filho, a ausência de manifestação de minha parte. Devo dizer que, como toda criatura sensível e experimentada pela vida, senti muito, senti com você e com sua mulher, a tristeza do acontecimento. Se não a manifestei, foi devido a um movimento de discrição, que me inibiu de dirigir-me a você por serem tão vagas e distantes as nossas relações pessoais, apesar da admiração que voto à sua inteligência e à sua linha cívica – admiração que nunca escondi das pessoas com quem trato. Achei que iria, de certa maneira, invadir aquele território a que só têm acesso os amigos – e eu nunca tive oportunidade de estabelecer com você laços de amizade, o que lamento. Entre os meus defeitos, creio não figurar a algidez diante da dor humana, e a de vocês dois atrai imediatamente todas as solidariedades, expressas ou silenciosas. Triste é também que, ao me aproximar de você, como agora faço, o motivo seja dessa ordem, quando poderia ser festivo ou ocasional. Não quero, entretanto, que perdure em seu espírito a menor dúvida sobre a minha reação ante o fato que o acabrunhou. Nada posso dizer ou fazer no sentido de induzi-lo a um estado de conformidade e aceitação do inelutável. Eu sei, de ciência própria, que só as forças interiores – e você as tem, apuradas – são capazes de nos fazer assimilar uma perda como essa e de criar as condições para o ressurgimento ou recuperação da vida moral. Ignoro se você é homem de fé. Eu não tenho nenhuma, porém me alentaram, mais de uma vez, as reflexões de Kierkegaard sobre os mortos e o relacionamento entre eles e nós.
Receba, com sua mulher, o abraço de fraternal sentimento, meu e de Dolores.
Seu
Carlos Drummond
In: RODRIGUES, S. (org.), Cartas Brasileiras – Correspondências históricas, políticas, hilárias e inesquecíveis que marcaram o país. 1ª edição, São Paulo, Companhia das Letras, 2017, p. 204.
1 Comments
Olá Prof Vitor
Beleza de crônica. Que carta carinhosa de Drummond! Além da dor pela perda do amigo, há um vislumbre de uma possível reaproximação.
Parabéns pela escolha dessa mensagem para esta crônica.