CARTAS – O OUTRO LADO DOS ESCRITORES 12
1 de agosto, 2025
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A ditadura no Brasil, como todos sabem, foi capaz de medidas arbitrárias e não raramente absurdas – bem ao estilo dos regimes totalitários. Censuraram e proibiram coisas que, aos olhos dela, não podiam vir a público, mas que não ofereciam qualquer perigo ao regime; e liberaram obras cujos próprios autores não entenderam como passaram impunes. Um dos exemplos que me vêm à lembrança é o livro “As Meninas”, de Lygia Fagundes Teles, escrito em 1973 e vencedor do Prémio Jabuti no ano seguinte. No romance, Lygia descreve os conflitos da juventude brasileira durante o Governo Militar. Uma das três meninas do título, Lia, é politicamente engajada e participa de greves na faculdade e da luta armada, adotando o pseudônimo de Rosa para manter sua identidade em segredo. Só isso bastaria para o livro ser proibido!

Muitos anos depois, em uma divertida entrevista à TV Cultura, Lygia contou que ficou surpresa com a liberação de seu livro à época e disse, rindo: – Eu tenho certeza de que o livro passou pela censura porque o censor deve ter achado a história chata e não leu até o fim.

Vida que segue, a Rede Globo está disponibilizando novelas antigas no Globoplay – algumas na íntegra e outras em fragmentos, ou seja, alguns capítulos que ainda “sobrevivem” nos arquivos da emissora. Ver alguns acaba sendo uma viagem no tempo: vestuário, penteados, vocabulário etc., além de atores e atrizes talentosos que se foram. Na semana passada, eu estava assistindo ao primeiro capítulo de “Chega Mais”, de Carlos Eduardo Novaes e roteiro de Walter Negrão, que foi ao ar de março a setembro de 1980.

A abertura da novela já causou certo rebuliço à época com a música da Rita Lee (quem mais?) de mesmo nome e um casal na cama, ele de costas para ela, e os dois colando uma bunda na outra. Lembro da primeira vez que meu avô viu e ficou parado em frente à TV, sem acreditar no que estava vendo. Eu dei risada.

Eu já estudava à noite e só via aos sábados, quando estava em casa.  

Bem, o que me chamou a atenção agora foi, também na abertura, o logo da novela. Nele, vemos o “i” de “Mais” com um pingo vermelho(!) entrando no “h” do “Chega”. Mais fálico e ousado, impossível”! Como é que isso passou pela censura e numa novela das 19h?! E a coisa ficou no ar, diariamente, de 2ª a sábado, durante seis meses! Só rindo.

De início, os protagonistas (Tony Ramos e Sônia Braga) iriam se chamar Tom e Jerry, em alusão ao desenho animado. A Globo, porém, não conseguiu licença para isso, e a personagem de Sônia ficou sendo “Gely”.   

Voltando ao começo deste texto, fiquei pensando que deve ter sido mesmo mais um caso em que a censura, burramente (para os censores), não enxergou o óbvio e deixou passar – ao mesmo tempo em que frequentemente procuraram “pelo em ovo” e pretextos para barrarem músicas, filmes, peças de teatro e livros que nada tinham de subversivo.

No caso da abertura da novela, como se diz no interior, deixaram a tartaruga escapar!

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

1 Comments

  1. Professor, nunca me atentei a letra “i” com um pingo”. Como também a letra da música “chega mais” da Rita Lee em “cheira mais”. Como dizia o personagem Betinho interpretado por Paulo Gracindo na novela “Rainha da Sucata”, “coisinhas de Laurinha”.

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