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COMEÇO, MEIO E FIM

COMEÇO, MEIO E FIM

 

“O prazer frequentemente nos visita; mas a mágoa cola-se cruelmente em nós” – John Keats, poeta inglês.

São 7h e a noite já caiu sobre a cidade, mas, no apartamento onde vemos os dois homens em silêncio, faz-se uma escuridão mais profunda.

O mais velho, com seu ar arrogante, está em sua poltrona de leitura. Calado, olha para o chão, não esconde seu desprezo pelo outro. Já falou tudo o que queria falar, sem medir palavras e sem poupar esforços para ferir e humilhar o rapaz sentado no sofá, como se fosse uma visita, embora estejam casados há dois anos.

Faz tempo que a impaciência do mais velho não permite qualquer diálogo. Temperamento explosivo e imprevisível, pode se zangar por qualquer detalhe que não combine com seus gostos e preferências. Há muito tempo que resta ao mais jovem tentar agradar o outro, dono do apartamento e sempre senhor da situação.

O motivo dessa nova briga é tão ridículo que não vale uma linha deste texto. Tão ridículo quanto a cena que acabou de ser montada pelo homem mais velho, enquanto o outro segura suas lágrimas até não poder mais. Erro fatal!

Não sabe que o outro alimenta-se de seu choro? Não sabe que o outro nutre-se de sua tentativa desesperada de ser “o rapaz ideal”? Não percebe que, quanto mais se abala, mais o outro se fortalece e se sente seguro dentro da relação?

Aliás, a insegurança é o que move o mais jovem – impulsiona-o a fazer sempre mais, impele-o a querer agradar o outro, enquanto, sem perceber, humilha-se e vai destruindo seu amor próprio. Em sua cabeça, comete o erro de se sentir eternamente em débito com o outro que o abrigou, que lhe proporcionou uma vida melhor e que lhe ensinou tanta coisa. Mas, espere aí: quando se conheceram, o mais jovem não era um mendigo, um sem-teto ou coisa parecida. Queria sair da casa dos pais, é certo!, mas tinha família, não era um qualquer no mundo.

No começo, tantas promessas, meu Deus! Café na cama, planos de uma vida feliz, sonhos de uma vida a dois! Pra tudo ir definhando com as horas e os dias de convivência intensa. O primeiro sinal foi o sexo; o segundo, a frieza com que o mais jovem foi sendo recebido nas suas mais simples alegrias e conquistas – um pequeno aumento de salário no trabalho, uma nota maior numa prova da faculdade, o telefonema de um amigo querido… tudo isso minado pela cara de mau humor do mais velho, sempre carrancudo, voltado para seus problemas, que, obviamente, eram maiores e mais importantes que o do rapaz.

Os dois não sabem exatamente quando foi que a distância tornou-se maior do que o desejo do toque, do beijo, do carinho. Os dois não têm ideia de quando foi que as sombras tomaram conta da luz, mas sentiram a luminosidade se esvaindo.

Então, sem verbalizarem, começaram a sentir prazer na ausência do outro. O mais velho viajava muito, e a separação, que era triste para ambos, começou a ser um alívio para os dois. No apartamento vazio, o mais jovem podia receber os amigos que tanto irritavam o mais velho. E este, em suas viagens, parecia se sentir feliz, mais livre, mais solto, como era antes do casamento.

E os dias foram se sucedendo; a distância foi aumentando; o mais velho, a certa altura, pediu que o mais jovem dormisse no outro quarto, pois tinham horários diferentes e isso atrapalhava o seu sono. O mais jovem, cometendo mais um erro e julgando estar salvando a relação, foi. Mas tudo estava já perdido.

Verdade seja dita: um casamento é responsabilidade das duas partes e, lógico, o mais jovem tem sua parcela de culpa pelo naufrágio. “Só fazem com a gente o que a gente permite que façam”, diz a psicanálise.

E os dois que se separaram eram tão diferentes dos dois que se juntaram!

O cronista escreve que “O amor acaba” por tantas razões. E o amor acaba na arrogância e no desprezo; e acaba no sorriso não dado; e acaba nas mãos que não se conhecem mais; acaba também quando, ao final das contas, mais nada há para ser dito ou vivido. Pode acabar também na traição.

O amor acaba quando dois seres já não sentem mais a vontade de fazer o outro feliz.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

1 Comments

  1. Como diz Carlos Dafé na música Tudo era lindo!

    “Era lindo afagar seus cabelos molhados, seus lábios rosados, era lindo beijar
    Era lindo esquecer um desgosto, fitando os seus olhos, me perdendo em seu corpo
    uma vida de sonhos”.

    Exatamente, “ERA”.

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