SEGREDO DE VIDA INTEIRA
8 de junho, 2019

Os dois garotos sobem no ônibus com suas mochilas e blusas de moletom penduradas nos ombros. É uma tarde fria em São Paulo, cerca de 15 graus, garoa fina sobre a cidade, a avenida 9 de Julho com trânsito pesado, mas com a faixa de ônibus liberada. Eles são bonitos, não posso deixar de notar. Um de barba; o outro, não. Estudam na mesma escola, posso ver pelo emblema de suas camisetas. Não têm mais do que 17 anos. Passam pela catraca e se sentam no banco atrás de mim.

Tento continuar minha leitura, mas os solavancos do ônibus impedem que eu prossiga sem me irritar. Fecho o livro e presto atenção às ruas, às pessoas debaixo da garoa no fim de tarde, quase 17h de uma segunda-feira. Por mais que eu não queira, é impossível não ouvir a conversa dos dois rapazes que procuram manter a voz baixa. Um deles começa, tom irritado na voz:

– O que você queria? Que eu te levasse para a praia com minha família? Páscoa é feriado chato, a única coisa que salva é o chocolate. Não é feriado para festa, bebedeira, cerveja na areia, turma reunida. Se eu pudesse, teria levado você junto, oras. Eu te falei na quinta-feira que eu ligava todos os dias de lá pra saber como você estava… eu não liguei? Liguei. Não precisa ficar com essa cara o dia inteiro. Na aula, você nem me olhou. No intervalo, ficou conversando com aquelas meninas chatas e eu esperando pra falar com você… porra, mano, precisava ficar de mau humor? Voltei da praia com o maior tesão, com a maior vontade de te beijar, de te agarrar… mas não: chego aqui em São Paulo à noite e você nem fala comigo ontem, domingo de Páscoa. Queria pelo menos ouvir a sua voz…

Continuo olhando pela janela, não esboço movimento, pois sei que isso pode constranger os meninos. Eles acham – um deles acha que está falando baixo, e na verdade está. Eu é que estou ouvindo tudo no banco da frente. De repente, sou tomado por uma melancolia que nem sei de onde vem… ou talvez saiba. O rapaz continua:

– O que é que eu posso fazer para você ficar bem? Não dá pra voltar no tempo, levar você pra praia com a minha família sem despertar desconfiança dos meus pais e da chata da minha irmã. Ela vive insinuando coisas sobre mim. Minha mãe já deu uma bronca nela, mas a baranga não para. Ainda bem que meu pai nunca ouviu nada. Se eu te levasse, seria mais um motivo para ela ficar falando. Vive me apresentando as amigas. Diz que elas gostam de cara de barba, mas não desconfiam de que eu só deixo essa barba porque você pediu. Diz que elas gostam de cara malhado, mas não sabem que eu só malho porque você gosta de cara malhado. Pô, é muita coisa lá em casa! Quando você não fala comigo – nem pelo “whats” – fico mal pra caralho.

O silêncio que se segue dura uns cinco minutos. O ônibus prossegue por entre carros, faróis e pedestres. Passageiros sobem e passageiros descem, mas, para minha surpresa, o ônibus não está cheio. Fico pensando em tanta coisa por causa das palavras do rapaz que se declara pro namorado, para o garoto que ele ama. Fico pensando no que eles ainda têm de fazer para esconder o que sentem um pelo outro, nas dificuldades que ainda têm (muitos não têm mais em pleno século 21) de manter um relacionamento amoroso escondido da família. Estudam num colégio tradicional e eu considero que os rumos dessa história são tradicionais também, beirando o clichê do namoro reprovado pelos pais. Qual a linha que separa o clássico do clichê?

Depois de um tempo, o rapaz recomeça:

– No sábado, andei muito pela praia pensando em você. Queria que a gente estivesse lado a lado. O tempo estava cinzento, garoando, praia vazia. Perfeita pra gente namorar e dar uns pegas. Fiquei de pau duro – abaixou ainda mais a voz – e tive de bater uma no banho de tanta saudade. Cacete, só três dias longe de você e sinto uma falta do caralho. Eu me sinto muito sozinho em casa. Não tenho conexão com ninguém da minha família. Minha irmã é uma babaca; meu irmão, então, esse é um xarope que só sabe correr atrás de mulher. E o pior é que meu pai aprova isso. Quando estou longe de você, mano, fico meio perdidão, sei lá… nem chocolate tem graça.

Rio sozinho dessa última frase. Para o rapaz, a tristeza sem o namorado é tanta que “nem chocolate tem graça”… jovens! O que me comoveu foi a sinceridade e pureza com que falou tudo isso. Infelizmente, eu não posso ver a reação do outro diante dessa declaração. Não posso olhar pra trás e dizer que eu gostaria que um dia alguém me dissesse isso, que eu nunca ouvi isso de ninguém. Não posso falar a eles sobre minha solidão e sobre um tempo em minha vida no qual eu quis tanto alguém que me amasse assim! De alguma forma, a conversa daqueles dois jovens me fez reviver tanta coisa que ficou adormecida e coberta com a poeira do tempo – tanta coisa que eu procuro não revisitar, nem ressuscitar. A Páscoa passou, e muita coisa em minha vida não ressuscitou no terceiro dia…

– Vamos fazer o seguinte: no próximo feriado, eu vou tentar ficar em casa. Aí, você vai pra lá com a desculpa de ter de estudar e a gente fica lá, você dorme lá, a gente transa a noite inteira… topa? Meu quarto só pra gente – pizza, internet, filme, transa. Vai ser do cacete! Diz que topa, vai… porra, tô pedindo!

Não consigo ver a reação do outro que está em silêncio. Será que está somente triste ou está de cara amarrada ainda? Será que tem um temperamento difícil e não cede para ver até onde o outro vai? Ou será que já se desmancha pensando no feriado que virá?

– Eu te amo, cara – diz o rapaz de barba!

É tudo o que eu escuto. Eles se levantam, vão descer no próximo ponto. Devem ser vizinhos, ou devem até morar no mesmo prédio… faço minhas conjecturas e imagino que as famílias são amigas, que eles se conhecem desde pequenos, que se apaixonaram ainda muito garotos, que desde cedo estudam juntos. Um dia, não aguentando mais de desejo, resolvem se abrir e confessar o que sentem. A irmã, a baranga, pegou no ar o que estava rolando. Num ato de ciúme, tentou e vem tentando estragar a felicidade do irmão. Os dois meninos são de famílias homofóbicas, logo se vê. Um, o de barba, me parece mais apaixonado que o outro, mas posso estar enganado. Não os conheço e talvez nunca mais os veja nesta imensa cidade que é São Paulo.

(O outro pode ter sofrido muito também com a ausência do namorado. Pode ter ficado triste, feriadão borocoxô, ovo de Páscoa sendo comido sem a companhia do namorado, garoa na rua e a saudade dentro de casa. Ele não fala, nem por isso posso concluir que tenha sofrido menos ou que seja apenas temperamental.)

Não sei se, aos 17 anos, já se pode falar em amor de vida inteira. Sou um pouco cético e acho um pouco cedo para tal intensidade. A vida traz tanta coisa que jamais imaginamos! A vida traz, até, a solidão e o desencanto.

Tenho certeza de que nunca mais vou esquecer esses dois rapazes tão bonitos e tão jovens que me pareceram estar vivendo um amor tão intenso. Quieto, olhando a paisagem lá fora, entre solavancos e buracos das ruas dessa cidade tão maltratada, faço uma oração pelos dois meninos. Peço que eles sejam felizes juntos apesar de suas famílias, amigos e professores. Que sejam cercados por iguais. Desejo-lhes que tenham uma vida mais feliz que a minha.

Tomara que curtam o próximo feriado. Tomara que transem, que se beijem, que se abracem, que passem – um ao outro – a certeza de que querem ficar juntos. Nunca se sabe por quanto tempo se verá o brilho nos olhos daquela pessoa que se ama. Até o fim de minha viagem naquele ônibus, naquele começo de noite fria em São Paulo, fiquei torcendo para que eles se entendessem.

Fiquei torcendo, principalmente, para que tivessem uma vida menos triste que a maioria dos habitantes deste planeta.

2h10am