“A memória é um diário que todos nós carregamos”
– Oscar Wilde
É um domingo ensolarado de inverno, dia em que normalmente a cidade veria a Parada do Orgulho Gay, evento impedido de se realizar por causa da pandemia de Covid-19. Nem por isso, deixo de ler muita coisa sobre o tema – avanços e retrocessos nesse campo, algumas notícias boas, outras ruins etc. E la nave va…
Vou à janela do meu apartamento, olho a cidade lá fora com seus prédios e ruas bem desertas não só pela hora – 8h da manhã -, mas principalmente por causa da quarentena. A maioria das pessoas está com medo. E com razão.
Do outro lado da rua, no apartamento do prédio em frente ao meu, um senhor, de mais ou menos 80 anos, estende uma bandeira gay em sua sacada. Ele o faz com certa dificuldade por causa de sua idade. Veste uma calça de moletom cinza, blusa vermelha, cabelos totalmente brancos, uma barba bem cuidada, também branca, e tudo me leva a crer que ele tenha sido um homem muito bonito quando jovem.
Fico observando o empenho com que ele amarra a bandeira do arco-íris como a estampar, sem pudores e com uma liberdade deliciosa, sua sexualidade, não se importando com o que possam dizer no seu prédio ou nos prédios vizinhos. E isso me dá uma alegria muito grande.
Bebo minha caneca de chá quente enquanto minha imaginação procura entender o passado desse senhor tão digno, tão firme em suas convicções e tão determinado que nem mesmo as dificuldades impostas pelos anos puderam impedi-lo de, a seu modo, mostrar seu orgulho.
Fico pensando que ele deve ter começado sua vida gay na década de 60 do século passado, e, inevitavelmente, deve ter enfrentado muitos preconceitos dentro de sua família, no seu trabalho, nas escolas que frequentou… deve ter sido um garoto bem discreto ou terá sido rebelde desde cedo, mostrando a mesma força que vejo agora? Será que saiu de casa nos primeiros anos de adolescência ou foi um homem que se deixou levar pelas convenções sociais de uma família tradicional e austera?
Entrou em choque com seu pai e foi protegido por sua mãe a vida toda? Ou, ao contrário, foi sua mãe que jamais aceitou sua homossexualidade? Isso também acontece às vezes.
Ele foi, sem dúvida, testemunha da liberdade sexual, presenciou a abertura das primeiras casas noturnas para gays na cidade e, mesmo que não as tenha frequentado, deve ter se interessado pela novidade libertadora. Quantas vezes foi a uma boate, durante a ditadura militar, sabendo que, na saída, a polícia poderia estar à espera para prendê-lo?
Deve ter se apaixonado por algum garoto de sua turma de escola; deve ter chorado sozinho no escuro do quarto quando viu que o garoto gostava de uma amiga da classe e veio justamente confessar pra ele que estava apaixonado pela menina. Terá se apaixonado por algum professor bonitão? Sua primeira masturbação terá sido para algum ator da antiga Hollywood? Rock Hudson, Burt Lancaster, Marlon Brando ou Gregory Peck?
Com certeza, deve ter tido um grande amor e tudo o que vem com este sentimento e sua descoberta: ciúme, tesão, insegurança, noites de insônia, felicidade, alegria, desejo… terá tido oportunidade de viver ao lado dessa pessoa? No meu íntimo, espero que sim. (Ele gostava de homens mais velhos ou de rapazes mais jovens?)
Há muitos anos, moro neste apartamento, e há muitos anos esse senhor é meu vizinho de bairro. Eu nunca havia parado para prestar muita atenção à sua rotina: sei que, em todas as manhãs, ele está lendo seu jornal na sacada; entra na hora do almoço e, no fim da tarde, senta-se no mesmo lugar para ler um livro, quando não está chovendo ou não está muito frio.
Volto a pensar que ele viu a chegada da Aids ao Brasil – eu também vi – e constatou a tristeza daqueles dias. Será que perdeu muitos amigos para a doença? Quantas vezes teve de chorar diante da fotografia de pessoas queridas que se foram, vítimas do HIV? Perdeu seu grande amor para essa enfermidade?
São tantas as memórias que uma vida tão longa pode conter, meu Deus! Tornamo-nos uma caixa de recordações de tantas pessoas, lugares, nomes, situações e paixões que atravessaram nosso caminho…
Talvez, com a idade, muito disso se perca e nunca mais seja lembrado. Talvez… mas meu vizinho viveu a época das cartas, esse poderoso instrumento de registros de emoções, ao contrário dos voláteis e-mails e whatsapps, tão superficiais quanto as próprias pessoas. Será que ele as guardou?
Esse senhor deve ter saudade de muitas coisas, mas também pode ser que gostaria de esquecer outras tantas.
Enquanto penso tudo isso, o senhor do outro lado da rua termina, sozinho, de amarrar sua bandeira do arco-íris na sacada. Sinto um carinho por ele que não sei explicar, mas que traduzo como respeito e admiração.
Torço muito para que ele tenha sido um homem profundamente feliz!
6 Comments
Que aula, Professor!
Começar o dia mergulhando na sensibilidade dessa narrativa enche nossos corações de um inexplicável carinho traduzido em profundo respeito e admiração.
Tenho um vizinho que mais ou menos se enquadra nessa narrativa! Terminando a leitura lembrei-me dele, e me pergunto se ele também de uma certa forma passou por tudo isso. Creio que deva pensar o mesmo de mim. ..se eu tive amores (sim, tive), enfim…………..
Sensível a crônica, Professor.
Professor mais que querido!!!!
Com essa sensibilidade não só na escrita mas também para a vida. Você é realmente um mestre, do qual lembro sempre com carinho e agora posso me deliciar lendo crônicas de suas palavras. Obrigada por compartilha-las!
Um beijo de sua amiga platônica, Marcelly!
Linda crônica. Cheia de significados e, porque não, lembranças.
Disse tudo amigo, cada um carrega seu diário e o importante é ser feliz, adorei, obrigada.
meu amigo descobrir você novamente. muitas saudades. adorei sua crônica.