A TROCA
10 de setembro, 2024
Mostrar tudo

ENTIDADES TERRORISTAS

Depois do fim da Segunda Guerra Mundial, o planeta ficou dividido entre as superpotências – os Estados Unidos e a (hoje extinta) União Soviética. Do lado de cá, a gente aprendia que os americanos eram o símbolo do capitalismo, da liberdade, da transparência, do progresso e da felicidade, enquanto os soviéticos representavam o socialismo, a austeridade, a ameaça, o mal em si. Símbolo dessa divisão era o próprio Muro de Berlim, feio, vergonhoso e triste. Era a tal da Guerra Fria.

Bem, é claro que as coisas não são assim: o ser humano, seja do ocidente ou do oriente, traz dentro de si o bem e o mal, é complexo e não pode ser classificado de maneira tão pobre, tão maniqueísta, só por causa de sua origem.

O tempo passou. Vimos a União Soviética desaparecer nos anos 80. O mundo tomou outra forma política e até geográfica – a ex-Iugoslávia é um ótimo exemplo disso. O Muro de Berlim caiu e a Alemanha foi unificada etc.

Mais tarde, a Rússia passou a ser para mim o país de Dostoiévski, Tolstói, Górki, Tchekov e Gógol com seus textos maravilhosos e uma literatura tida como a melhor do mundo por muitos críticos.

Não nego, contudo, que a Rússia tenha continuado um país bem misterioso e um tanto estranho para este cronista. Não porque eu pense que lá só exista gente do mal ou que todo russo pensa em destruir o mundo. Claro que não! É que algumas coisas ainda me assustam na política daquela nação – as poucas que a gente fica sabendo por estes lados. Como não se preocupar com um cidadão chamado Vladimir Putin?

Nascido em 07 de outubro de 1952, Vladimir Vladimirovitch Putin é um ex-oficial de inteligência que, desde 2012, é o presidente do país. O homem ocupou cargos de primeiro-ministro de 1999 a 2000, de presidente de 2000 a 2008 e como primeiro-ministro novamente de 2008 a 2012. É a cara da Rússia atual – e nenhuma decisão política é tomada sem passar por sua avaliação. Ainda temos presos políticos que morrem nas cadeias russas, bem como opositores do regime que, numa versão real dos antigos filmes de espiões, são envenenados mundo afora. É um consenso que, sob o governo de Putin, a Rússia vem sofrendo um grande retrocesso democrático e um avanço do totalitarismo, além de corrupção e violação dos direitos humanos.

Tenho amigos que já visitaram aquele belo país e gostaram de lá, mas foram unânimes em falar de certa opressão que se sente no ar. Talvez um dia eu o visite também.

O ato mais recente de Putin a chocar o mundo foi a invasão da Ucrânia – guerra que, desde fevereiro de 2022, está nas páginas do noticiário internacional por sua barbárie e violência.

Notícia menor, mas não menos importante em se tratando do país onde a liberdade sempre esteve na UTI, informa que “Rússia coloca grupos LGBTQ+ em sua lista de entidades terroristas”. Sim, é isso mesmo, você não leu errado: entidades terroristas! Está lá em uma página do Estadão de março deste ano. A nota diz, vamos lá: “A Rússia adicionou o movimento internacional LGBT+ à sua lista de pessoas e entidades ‘terroristas’, de acordo com nota do serviço de inteligência financeira. A decisão foi anunciada depois que a Suprema Corte declarou o movimento LGBT+ como ‘extremista’, em novembro, o que provocou a ilegalidade do ativismo no país. Na quarta-feira, 20 de março, autoridades anunciaram a prisão dos donos de um bar na cidade de Orenburg, nos Urais, por ‘extremismo LGBT+’. Eles podem pegar até dez anos de prisão. Nas últimas semanas, vários russos foram multados por publicarem fotos com bandeiras arco-íris ou por divulgarem na internet vídeos de mulheres se beijando”.

Esse negócio de considerar a homossexualidade um desvio, um pecado, um crime ou coisa parecida nunca foi um privilégio russo, lógico. O Reino Unido, capitaneado pela civilizadíssima Inglaterra, por exemplo, considerou essa prática um crime até pouco tempo atrás. Vale lembrar o caso do matemático britânico Alan Turing que ajudou a decifrar os códigos dos segredos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Turing foi condenado por indecência grave depois que foi descoberto o seu relacionamento com um jovem de 19 anos, em 1952. Ele foi castrado quimicamente e se suicidou em 1954.

Há muitos casos horríveis, mundo afora, em que a moral e os bons costumes não mediram esforços para castigar quem não se encaixava na “normalidade”.

Sempre irônicos, esses episódios mostram a hipocrisia humana e a maldade que normalmente permeiam comportamentos autoritários e ditatoriais. Putin vê os homossexuais como entidades terroristas – mas não se olha no espelho para encarar um líder que manda bombardear, na Ucrânia, hospitais, escolas e creches indistintamente.

Como sempre, os verdadeiros culpados pela crueldade das guerras nunca estão nos campos de batalha. Nunca saem de trás de suas escrivaninhas para sentirem braços e pernas arrancados por tiros e bombas.  

 

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

3 Comments

  1. Professor, um país que eu gostaria de conhecer, quem sabe! Como não lembrar dos filmes do James Bond? Aquela coisa toda de espiões que me fascina até hoje. Lembrei-me também do cosmonauta Iru Gagarin, o primeiro humano a orbitar a terra, estava a bordo da nave Vostok (salve erro). Tive o privilégio de importar vários cds daquele país, que por sinal a qualidade é espetacular. A arquitetura é linda, além do idioma que acho imponente. A opressão aos LGBTQIA+ é terrível, triste e bizarra.

  2. Angelo Antonio Pavone disse:

    Olá Prof Vitor
    Excelente crônica (para variar).
    As ditaduras são um anacronismo na evolução humana. Como apenas um indivíduo pode comandar o comportamento de milhões de pessoas que são diferentes umas das outras. É uma loucura!!!!!
    Parabéns!!!!!

  3. Clarice keri disse:

    Crônica ótima, sempre me surpreendendo, falar sobre ditadores que usam máscaras e se escondem atrás de suas mesas, com certeza daria um mar de histórias, e você com poucas palavras falou muito, obrigada.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *