LOS ANGELES (OU CARLOS ALBERTO)
19 de outubro, 2021
OS HOMENS DOS BEST SELLERS
16 de novembro, 2021
Mostrar tudo

ESTAÇÕES

PRIMAVERA

 

        Foi muito bonito de sua parte quando, nos fins de setembro, ele me mandou um buquê com duas dúzias de rosas vermelhas. Eram rosas belíssimas, bem escolhidas, importadas, daquelas que dão pena quando murcham e já não servem para demonstrar o amor, o carinho e o desejo.

        Elas chegaram numa manhã quente de Primavera,  parecendo mais Verão. Era um sábado alegre, três dias depois de termos nos conhecido num bar. Naquela quarta-feira, ele veio pra cá e passamos a noite juntos. Sexo bom, gostoso, sem frescuras, fizemos de tudo. E ele se foi na manhã, deixando o perfume no meu travesseiro e no meu lençol. Disse que tinha de passar em casa, tomar um banho, trocar de roupa para ir trabalhar. No mesmo dia, à noite, ligou e marcamos de nos ver no próprio sábado. As rosas vieram antes.

        O que se seguiu foi gostoso. Estávamos cada vez mais juntos. Jantávamos juntos – aqui ou na casa dele -, um dormia na casa do outro e fomos nos apegando cada vez mais. Houve a ideia de morarmos juntos, mas percebemos que isso era prematuro. “Muita água mata a planta!”, dizia a minha avó.

        E ele me acostumou mal ao mandar rosas vermelhas nas manhãs de sábado – por volta das 10h, o porteiro avisava que haviam chegado; eu descia até a portaria, pegava o buquê e subia feliz no elevador com tudo aquilo na mão. Meu trabalho era ajeitá-las no vaso da sala e, à noite, agradecer a ele pelo presente lindo. No cartão, a mesma mensagem sempre: “Para deixar sua casa ainda mais bonita – e para deixar nosso namoro ainda mais sexy”.

        O “Eu te amo” veio no cartão depois de um mês. Fiquei feliz, é claro. Eu tinha o mesmo sentimento. E as rosas eram o símbolo perfeito do seu bom gosto, do nosso desejo um pelo outro e do nosso amor que parecia bonito e natural como elas.

        “Difícil encontrar um homem tão sensível e carinhoso como você”, eu dizia. “Difícil encontrar um homem tão especial e diferente como eu encontrei”, eu ouvia.

 

        VERÃO

       

        Ele me fez uma surpresa para o meu aniversário. Nem suspeitei que tinha combinado isso com minha mãe. Amigos e parentes reunidos, ele veio com um par de alianças e aquelas coisas todas de compromisso sério. Fiquei feliz, muito feliz! Embora constrangido, fiquei feliz e com um pouco de medo, devo admitir.

        Seu jeito impulsivo, confiante e alegre me contagiava. Impossível não embarcar nas suas “loucuras” e projetos. Como viver sem ele dali em diante? Como é que eu tinha vivido sem a sua alegria até ali?

        Faltando quinze dias para o Natal, ele me chegou assim: animado, contente, feliz, todo cheio de sol e de energia, com duas passagens na mão para irmos ao nordeste – embarque no dia 21 de dezembro, volta para o dia 02 de janeiro. Natal e réveillon em hotel de frente para o mar, piscina, todo o conforto e luxo de um cinco estrelas.

        Seu ânimo era contagiante – e ele não tinha ideia do trabalho e da dor de cabeça que eu teria ao dizer pra minha família que eu não iria passar o Natal com eles. A notícia magoaria principalmente minha mãe – meu pai, meus irmãos, cunhados, cunhadas e sobrinhos não se importariam, mas minha mãe ficaria muito, muito triste. E ficou!

        Além disso, eu estava planejando passar o réveillon num país onde eu pudesse sentir frio, sobretudo com neve. Pensei em cada um passando o Natal com seus familiares e, depois, o Ano Novo nos Estados Unidos, no Canadá ou na Europa. Desisti de tudo isso, e fomos para o nordeste passar nem sei quantos dias de sol, praia, mar, caipirinha, cerveja, peixe assado, mais sol, mais mar, mais caipirinha, mais peixe assado, muito calor e muito sexo também.

        Eu havia esquecido de lhe dizer que não gostava de praia. Ele adorava. Na volta a São Paulo, ele me propôs que fôssemos passar o Carnaval no Rio. Uma semana inteira de sol, praia, folia, caipirinha, cerveja e sexo. Quando eu lhe disse que não queria ir, ficou pensativo e me perguntou: “Você se importa que eu vá?”. Eu disse que não, eu não queria estragar seus planos – mas, numa situação como essa, ou a gente fica infeliz ou o outro fica descontente. Ele foi ao Rio. Eu fiquei com meus livros e filmes na semana da folia. Falávamos todos os dias pelo celular e um pouco de insegurança sutilmente se meteu entre nós dois.  

        As chuvas torrenciais do começo daquele ano lavaram e levaram muita coisa! Estávamos juntos havia cinco meses, apaixonados, envolvidos até a raiz do cabelo. Nossos planos de viver no mesmo apartamento começaram a ficar mais fortes e, numa noite, depois de pizza e muito vinho e muitos beijos, os dois homens admitiram estar cansados da solidão na volta do trabalho. Queriam o abraço diário, queriam que a cama não fosse mais tão espaçosa, precisavam sentir que eram amados e que suas casas eram lares. Admitimos tudo isso – “In vino veritas”.  

        No começo de março, ele me convenceu a mudar para o seu apartamento. “É maior, tem mais espaço lá para as suas coisas do que aqui para as minhas. Alugue o seu, ganhe uma graninha com isso. O que acha?”. Não aluguei: deixei meu sobrinho morando nele com a condição de não ficar levando mulherada para lá. “O povo desse condomínio é chato, hein… não vá me fazer passar raiva!”. “Tá bom, tio! Fica tranquilo…”.

       

        OUTONO

        O combinado era que quem chegasse antes providenciasse o jantar – feito em casa ou comprado na rua, teria que ter comida para aquele que chegasse depois. E isso foi muito bom! Muito bom chegar em casa e ver a mesa arrumada, luz baixa, música tocando, ele de banho tomado, perfumado e me esperando. Em outros dias, era igualmente prazeroso esperá-lo com tudo ajeitado – mesa, talheres, pratos, cheiro gostoso vindo da cozinha. Eu me sentava no sofá, olhando a cidade lá embaixo, enquanto ele tomava seu banho e vinha, só de calção, pernas e peito peludos de fora – só pra me atiçar – se deitar nas minhas pernas. Quando começava a querer dormir, eu me levantava e o chamava  para jantar. Depois, um ou dois episódios de uma série que estivéssemos curtindo na época. E a noite descia, fria, um tanto gelada, naqueles meses de março e abril.

        Ele me pediu que não fizesse festa para seu aniversário – o primeiro que passávamos juntos. Respeitei. No dia, contudo, mandei lhe entregar duas dúzias de rosas vermelhas no escritório, com cartão e uma declaração de amor. Foi um auê! Mais tarde, ele me disse que até seu chefe, sempre sério, veio lhe dar um abraço… e entendeu que ele era gay. À noite, como vingança pelo que lhe fiz, ele trouxe champagne para comermos com o bolo que eu havia encomendado. E disse que queria muito sexo! Que eu me preparasse!

        Seu celular quase estourou de tanta mensagem e ligação. Muita gente ali eu conhecia. Quando ele foi tomar banho e pediu que eu atendesse a uma chamada, era um rapaz. Ouviu minha voz e disse que ligaria depois. Não quis deixar o nome, nem recado. Quando lhe falei da ligação estranha, ele desconversou…

        Algumas folhas mortas começavam a cair…

 

        INVERNO

       

        Havia muitos anos que não fazia tanto frio em São Paulo! Tivemos que tirar casacos, botas, cachecóis e até luvas do armário. Que apartamento gelado! Dormíamos agarrados um ao outro, às vezes com dois cobertores e ele prometia para si mesmo colocar um aquecedor de ar no próximo inverno. Entre resmungos e beijos, ele pegava no sono agarrado a mim – “Você é muito quente, cara! Graças a Deus!”. Eu ria, ele dormia.

        Foram muitas as noites em que me levantei e fui para a sala, enrolado num edredom. Eu punha a música num volume bem baixo e ficava olhando a cidade lá embaixo, alguns poucos carros ou motos cortando o frio e a noite; algumas estrelas no céu se deixavam ver pela grande vidraça do terraço e eu pensava na vida.

        Algo dentro de mim me incomodava. Eu não sabia bem o que era. Um fio solto, uma peça sem encaixe, um sexto sentido que me perturbava.

        Tanto tinha acontecido e de maneira tão rápida que parecia mentira! Dez meses atrás, eu vivia sozinho, arriscava minhas idas a bares e boates, até aplicativos de pegação, mas sem qualquer convicção e esperança de que encontraria alguém. Pra falar a verdade, eu não acreditava em nada disso. Pensava que meu tempo havia passado. “Há um tempo para tudo”, diz a Bíblia.

        O frio sempre me fez bem. De alguma forma, senti que estávamos mais próximos – e não digo só fisicamente. Procuro não pensar muito naquele rapaz que ligou no  aniversário dele. Uma transa? Um caso mais sério? Uma galinhagem inconsequente? Não sei…

        Foi ideia dele pegarmos férias em julho e viajarmos para a Itália. Verão, sol, calor, cidades históricas, arte, beleza… e eu querendo ir para a Argentina ou Chile, sentir um frio anda mais intenso do que em São Paulo. Podíamos ir à Itália no ano seguinte e na Primavera ou no Outono, por exemplo?

        Ele concordou. Graças a Deus, ele concordou! Fizemos uma viagem bem mais modesta para Buenos Aires e Santiago. Tomamos vinho de alta qualidade, ele se empanturrou de ótima carne, e eu agradeci por ele ter feito minha vontade.

        Foi um inverno inesquecível! Ele nunca esteve tão bonito e tão charmoso. Deveria curtir mais essa estação – ela o deixa mais gostoso… em todos os sentidos. Transamos muito, namoramos muito. Vento cortante lá fora, saíamos para passeios incríveis… e eu sabia do seu esforço para me fazer feliz. No meu íntimo, eu estava profundamente agradecido.

        Quando voltamos ao Brasil, o frio aqui era intenso ainda – menos do que lá, mas era intenso ainda. Pra mim, foi um prolongamento da viagem. E ele fazendo a contagem regressiva para o calor voltar.

        Foi naquele inverno que ele chegou do trabalho com um misto de alegria e preocupação. Percebi que ele me beijou sem muito entusiasmo, sem a convicção que sempre mostrou. Eu fazia o jantar. Ele foi para o nosso quarto e entrou no chuveiro. A colônia que ele passava no peito chegou até mim, e isso sempre me excitou! Eu adorava!

        Ao nos sentarmos pra jantar, ele me deu a notícia: o chefão queria que ele passasse cinco anos na Europa – “Com direito a vir ao Brasil duas vezes por ano” – gerenciando não sei o quê. Eu estava comendo a massa com gosto, mas perdi um pouco o apetite. Fui tomado de insegurança e de uma repentina saudade. Uma saudade inesperada, dolorida, que não tinha cabimento – ele ainda estava ali, na minha frente!

        Estendendo o braço, ele tocou na minha mão e senti seu calor. Ficamos alguns segundos olhando um para o outro, toda a dúvida tomando forma naquele momento. Ele queria dizer “não” para o trabalho, mas não podia. Eu queria dizer “sim” para sua viagem, mas não queria. Eu me senti imaturo, com ciúme dos homens que eu nem conhecia, mas de cuja existência eu tinha certeza.

        Abri uma das garrafas de vinho que havíamos trazido da viagem. Enquanto enchia a sua taça, fiquei esperando que ele continuasse a falar. Ele, contudo, manteve seus olhos baixos, olhando para o nada.

        Fui eu que tomei a iniciativa! Eu disse: “Vá, não perca essa oportunidade”. Foi a primeira vez que vi seus olhos cheios d´água. Nós nos abraçamos ali mesmo. Beijei-o como nunca o havia beijado. Eu não podia mantê-lo aqui. Ele se sentiria como um animal enjaulado, provavelmente infeliz e decepcionado por perder uma oportunidade tão boa. “Passarinho na gaiola também canta, mas canta triste”, diziam meus tios do interior.

        No último dia daquele inverno, estávamos no aeroporto despachando suas malas no voo para a Alemanha. Seus pais, seus dois irmãos e eu conversávamos e tentávamos mantê-lo animado – trabalho novo, país de Primeiro Mundo, chance de desenvolver o idioma, projeção na empresa e todos esses clichês e platitudes que se dizem nos aeroportos da vida.

        Seu último abraço, antes do embarque, é pra mim. A família respeita. Até a sua mãe. Fazemos declarações ao ouvido um do outro – nada que já não tenhamos falado em casa, nas numerosas noites em que conversamos sobre sua ida.

        Hora do embarque! Ele se vai. Sua volta está prometida para dezembro – desta vez, Natal e réveillon em São Paulo. Ele procura sorrir. Choramos um pouco juntos.

        Depois que ele some de nossas vistas, despeço-me de seus familiares e vou para o meu carro. O frio está intenso. Vento gelado que corta o meu rosto, céu cinzento, garoa fina que começa a cair. No caminho de volta, música no celular conectado ao carro.

        Ao chegar em casa, o porteiro me chama pelo interfone e pede para eu descer para a portaria, pois há uma encomenda pra mim. Como entrei pela garagem, ele não conseguiu me entregar o que havia chegado.

        Quando desço, ele me entrega um maço de duas dúzias de rosas vermelhas e diz: “Chegaram agora há pouco”. Tenho vontade de chorar. Que coisa!

        Sento-me no sofá e vejo o sábado frio lá fora. Passa um avião e dói um pouco pensar que pode ser o dele. Leio o cartão no qual ele diz: “Cada rosa dessa é um pouco do meu amor e da minha saudade. Você me espera? Te amo!”.

 

                                    **********

       

Entre chamadas de vídeo diárias, ele demorou para tomar coragem e me falar de um rapaz chamado Klaus. Natural de Munique, tem 25 anos e é engenheiro civil. Eles se conheceram no escritório. Muita conversa, começaram a fazer companhia um para o outro. Ele o ajuda com o idioma.  Ambos se sentiam muito sozinhos em Berlim e descobriram que eram vizinhos e…  

Por fim, um e-mail longo, dolorido, pesado. Não tive muita vontade de ler a mensagem que ele me enviou. Eu já sabia o fim da história – ou o começo dela. Quando não respondi, ele me chamou pelo vídeo. Foi nossa conversa mais difícil! Ele e o rapaz alemão já moravam juntos.

Por aqui, desocupei seu apartamento. Deixei as chaves com a mãe dele, que vai tomar conta de tudo. Que ele ficasse tranquilo! Eu voltaria para o meu.

Hoje, faz muito frio em São Paulo. Garoa gelada, ruas molhadas, pessoas com seus agasalhos e guarda-chuvas. Alguns anjos de pedra tocam o sino da igreja próxima. Eu posso ouvir. É domingo, acabei de acordar, tomo um chocolate quente enquanto olho a cidade lá embaixo.

Tenho saudade. Sinto falta de tanta coisa… faz muitos sábados que ninguém me manda rosas.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

3 Comments

  1. Linda crônica!
    Lembrei- me da música do Cartola, “As rosas não falam”.

    Queixo-me às rosas
    Mas que bobagem
    As rosas não falam
    Simplesmente as rosas exalam
    O perfume que roubam de ti, ai.

    Sua avó tinha razão, “muita água mata a planta”.

  2. Ricardo Cano disse:

    Delicado, sensível, pungente.
    Enquanto lia, sentia a passagem inexorável do tempo em que nada muda, mas tudo fica diferente.

  3. Clarice keri disse:

    Linda crônica, pensei naquela frase: que seja eterno enquanto dure, uma pena que nada é eterno, adorei, obrigada.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *