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GENTILEZAS

Às vezes, nos deparamos com pessoas que, gratuitamente, são capazes de um ato gentil que nos encanta – e nos encanta porque são gentilezas desinteressadas. Foram gentis porque quiseram ser gentis. Ponto.

Mas não deveria ser sempre assim? Deveria, mas não é. Daí, nossa surpresa e nosso encantamento. Eu, pelo menos, fico muito comovido quando um desconhecido é gentil comigo ou com alguém que me é querido. Acho que o “carinho desinteressado” é o mais espontâneo. E isso me faz bem.

Quando éramos crianças, lá na Freguesia do Ó, meu irmão caçula cortou o dedo numa lata que ele encontrou na rua. Coisa de criança. Ele tinha seis ou sete anos. O corte foi profundo. Lembro de minha mãe correndo, nervosa, quase chorando, enrolando o dedinho do filho que sangrava muito numa toalha e correndo para pegar um táxi e levá-lo a um hospital na Lapa. “Cuide do seu outro irmão”, ela me pediu. Meu pai não estava em casa. Estava trabalhando. Fiquei em casa com meu irmão do meio. Minha mãe e meu outro irmão voltaram do hospital dali a horas. Na pressa e no desespero – o corte tinha sido grande e profundo – minha mãe havia entrado num hospital particular. Depois dos quase dez pontos dados pela enfermeira, veio a conta – que minha mãe não tinha dinheiro para pagar. Quando viu a situação, um senhor cuja esposa estava sendo atendida, chegou perto e se ofereceu para pagar pelo curativo do meu irmão caçula.

Minha mãe, sem jeito, aceitou, mas com uma condição: que o homem lhe desse o endereço para que meu pai pudesse pagá-lo. No fim do mês, salário recebido, lá foi minha mãe até a casa daquele senhor tão gentil devolver-lhe o dinheiro gasto. “Era o mínimo que seu pai e eu podíamos fazer”, dizia ela, sempre que se recordava daquela situação. Eram os anos de 1970.

Uma vez, tive que apresentar um trabalho escrito para minha orientadora e eu não tinha computador em casa. Um professor que eu mal conhecia – eu era um professor recém contratado na escola – gentilmente me ofereceu para ficar na casa dele, usando o seu computador. Deu-me a chave e disse: “Eu vou dar aula à tarde e à noite. Faça o seguinte: deixe a chave com meu porteiro. Pego quando eu voltar”. E lá fui eu, agradecendo aos céus por aquela alma caridosa ter aparecido na minha frente, na sala dos professores, e ter me salvo de um aperto. Ele confiou em mim, e isso foi até mais valioso do que a própria permissão para usar o seu computador. Claro que viramos amigos.

Falo aqui de gentilezas de pessoas que mal nos conhecem. O mundo está tão cheio de desconfiança, meu Deus! Tanta gente se protegendo, tanta gente com medo, tanta gente que já foi vítima de golpes e mentiras!

Tenho certeza de que, enquanto lê este texto, o leitor se lembra de algum gesto “do bem”, uma gentileza de um estranho que lhe tenha marcado. Às vezes, um grande problema para nós pode ser resolvido com facilidade por uma outra pessoa… e vice-versa. A boa vontade conta, e a empatia também.

Rubem Braga tem uma crônica – “Lembrança de Lobato” – na qual relata a gentileza de que foi alvo por parte do autor do “Sítio do Picapau Amarelo”. O escritor capixaba estava com 20 anos e veio a São Paulo sem conhecer ninguém por aqui. Por causa de alguns de seus textos sobre os bandeirantes, houve um escritor que chegou a pedir sua expulsão do estado. Braga conta também que, assim que conheceu Monteiro Lobato, este o tratou “como a um irmão mais moço”, sendo atencioso e gentil para um quase desconhecido. Vida que segue, anos depois, Rubem Braga volta a São Paulo, novamente desempregado, sem saber o que fazer. Deu de cara com Monteiro Lobato na rua.

O criador do Visconde de Sabugosa deu-lhe uma carta de recomendação para que a apresentasse no jornal O Estado de S. Paulo. E Rubem conseguiu o emprego. No fim de sua crônica, lemos o bonito trecho: “Lobato estava sempre acreditando em alguma coisa, e com veemência. Ele acreditava em D. Benta, no Marquês de Rabicó, na Narizinho, em todo o seu povo encantado. Foi por isso que essa gente vive e vive e não deixará Lobato morrer: ficará aí contando as histórias dele. As histórias de um homem aventuroso, destemido, engraçado e bom”.

Escrevo esta pequena crônica porque, ontem à noite, eu estava indo para a boate encontrar alguns amigos. No caminho, mais ou menos perto do lugar, um homem desconhecido me parou, isso já eram mais de 11h30 da noite, e me perguntou: “Você vai para o lugar X?”. Eu disse que sim. Ele retirou um convite do bolso e me deu. “Toma. É um convite VIP. Fica pra você”.

Agradeci e ele se afastou pela calçada, mãos no bolso da jaqueta que o protegia da noite fria, desparecendo depois do primeiro poste de luz que mal iluminava a rua. Não guardei a fisionomia dele, não sei se aquele homem já havia me visto na boate e me reconhecera. Não sei se apenas deduziu que eu estivesse indo para lá por causa do horário e da rua. Não sei. Ele foi gentil com um desconhecido. Poderia simplesmente ter jogado o convite no lixo, já que não iria aproveitá-lo, mas não jogou.

Fiquei feliz com seu gesto. Mas é claro que este último episódio não se compara ao primeiro, vivido por minha mãe, quando eu e meus irmãos éramos pequenos.

 

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

3 Comments

  1. Professor, comecei a ler a Crônica fui “viajando” e me emocionando! Lembrei-me de tanta coisa, de tantas gentilezas que já me fizeram e acabei chorando.
    Dias atrás indo a pé para o trabalho, havia chovido! Caminhando por uma calçada, acabei escorregando e pimba, fui ao chão.
    Perdi a noção do tempo e do espaço! Fiquei totalmente fora do ar, mas percebi que algumas pessoas riram da situação. Houve um rapaz (só lembro da cor do carro dele) que parou o trânsito com o seu veículo para me perguntar se eu precisava de algo. Na altura do campeonato eu já havia me levantado e respondi que estava tudo bem: agradeci e segui para o meu trabalho
    Algumas pessoas ainda têm amor ao próximo.

  2. Angelo Antonio Pavone disse:

    Olá Prof Vitor
    Belíssima crônica. Eu acho que a vida é uma sucessão de acasos. Alguns desses acasos acontecem nos acontecem em situações bem particulares e especiais. E nos deixam surpresos e ocasionalmente felizes. Ó vida vida !!!!!
    Parabéns

  3. Clarice keri disse:

    Bonita crônica, você disse bem, ficamos felizes com gentileza gratuita, pena que são raras, obrigada.

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