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HÁ 40 ANOS

       Escrevo perto do 5 de junho. Nesse dia, há 40 anos, o americano Centro para Controle de Doenças (CDC, em inglês), na edição de seu Relatório Semanal de Mortalidade e Morbidade (Morbidity and Mortality Weekly Report) dava conta de que “no período de outubro de 1980 a maio de 1981, cinco homens jovens, todos homossexuais, foram tratados de pneumonia em três diferentes hospitais de Los Angeles, na Califórnia. Dois dos pacientes morreram. Todos os cinco tiveram confirmação de prévia ou corrente infecção por citomegalovírus e infecção por candidíase”.

       Um mês depois, o jornal B.A.R. (Bay Aerea Reporter), de San Francisco, divulgava uma “Pneumonia de Homens Gays” e recomendava àqueles com dificuldade de respiração que fossem ao médico.

       O mundo não tinha ideia do que estava pra acontecer. Os casos foram se multiplicando nos Estados Unidos e, como sempre, muita gente deu de ombros em outras partes do planeta: primeiro, porque isso estava acontecendo lá, problema deles, então; segundo, porque parecia afetar somente homossexuais, isto é, problema daqueles homens promíscuos e sem vergonha que frequentavam saunas e quartos escuros de boates; terceiro, foi um prato cheio para os homofóbicos (nem se usava esse termo à época) descerem o sarrafo no movimento gay que muito havia conquistado, sobretudo depois de Stonewall, em Nova York.

       O fato é que San Francisco – a Califórnia como um todo – ainda vivia o luto e o baque pelo assassinato de Harvey Milk, em 27 de novembro de 1978. Milk tinha sido o primeiro ativista declaradamente homossexual a ser eleito para um cargo público naquele estado. Foi um fim de década pesado!

       Cada um de nós tem suas lembranças da década que se iniciou. Em 1980/81, meu mundo se resumia à família, aos amigos e à escola. Não tínhamos acesso a muita informação;  a TV, com seus poucos canais abertos, era nosso elo com o mundo.

       Veio o ano de 1982. Eu, com 18 anos, comecei a trabalhar como office-boy (“profissão” extinta hoje) para um escritório no centro de São Paulo. Meu interesse pela língua inglesa começava a despontar, assim como a vontade de ir embora para os Estados Unidos. Claro que era um sonho impossível à época: eu não tinha dinheiro nem para almoçar. Comia lanche ou salgadinhos e vivia mais do dinheiro que o patrão dava pra pegar táxi e ir a bancos, empresas e repartições públicas. Eu ia de ônibus ou a pé (correndo) e ficava com o dinheiro do táxi para mim. Serviço feito, patrão satisfeito e tudo bem! Conto isso porque comecei a comprar revistas americanas na extinta Livraria Siciliano – era um modo de eu tomar contato com o inglês, mas era também uma espécie de fuga de nossa realidade: um país com altos índices de desemprego, uma inflação de dois dígitos ao mês e poucas perspectivas para um rapaz como eu, recém saído do colégio estadual do bairro, e sem condição financeira de continuar os estudos.

       Uma dessas revistas, a “US Magazine”, de 31 de agosto de 1982, trazia a atriz Joan Collins na capa e uma matéria especial sobre o seriado “Dinastia”, que concorria com “Dallas”. No alto, em letras menores, lia-se: “O misterioso câncer que está matando os gays”. Dentro, a matéria recebia o seguinte título: “Praga gay”. Lembro que a matéria me chamou a atenção porque eu era gay, claro, mas também fiquei impressionado pelos relatos que a revista trazia.

       No ano seguinte, já no Exército, lembro da palestra do sargento enfermeiro para aquela multidão de rapazes no cio, alertando os soldados: “Vocês que ficam pegando meninas aí na estação de trem, as conhecidas “Marias Fuzis”, cuidado: tem uma doença aí que a gente não conhece e que não tem cura. Está matando gente e é bom vocês se prevenirem. Não me venham doentes na minha enfermaria, seus mocorongos”.

       Em 1985, o ator Rock Hudson, um ícone do cinema americano e símbolo de virilidade, grava um programa de TV da amiga e atriz Doris Day, e sua aparência é assustadora. Em Paris, para se tratar, vem a revelação de que o ator tem, na verdade, Aids.  Foi um choque para os milhares de fãs – não só pela constatação de seu estado de saúde, mas pela revelação de que ele era homossexual. Hudson viria a morrer em 2 de outubro daquele mesmo ano, faltando pouco mais de um mês para seu 60º aniversário.

       Demorei para, efetivamente, começar minha vida sexual com outros homens. Mais por medo da homossexualidade do que da doença, fui meio tardio por um lado – e bastante precoce por outro. Aos 22 anos, eu estava num relacionamento sério com um homem 19 anos mais velho do que eu e que, um mês antes de me conhecer, havia feito o teste para o HIV. O resultado? Positivo.

       Ele me contou isso semanas após nos conhecermos e, fiquei sabendo depois, João tinha certeza de que eu sumiria assim que eu soubesse do teste. Não sumi. Fui morar com ele, ficamos juntos por quase oito anos e ele nunca desenvolveu a doença. Ao nosso redor, porém, as pessoas foram morrendo. Ele perdeu mais amigos do que eu – mais de 20. Eu perdi uma pessoa muito querida, uma paquera que virou amizade e que guardo até hoje com muito carinho e saudade: José Roberto. (Seu período de ativista por causa da doença daria outro texto. E dará!)

       Bem, eis que a coisa chegou perto de mim, pois meu parceiro era HIV-positivo! Estávamos em 1986. Eu começara minha vida gay um ano antes, em plena pandemia da Aids, e muita gente foi pega desprevenida. A polarização – essa nossa velha conhecida – deu as caras: de um lado, ativistas  mostrando a importância de campanhas de conscientização; de outro, gente indignada, achando uma “pouca vergonha” que se distribuíssem, por exemplo, camisinhas nas portas de saunas, boates e cinemas “de pegação”. Enquanto médicos alertavam para a importância do que se chamava de “sexo seguro” (“safe sex”, do inglês), puritanos e “santos” culpavam os homossexuais pelo surgimento e pela disseminação da doença. E famílias iam perdendo seus filhos, primos, netos, irmãos, pais, tios etc. Campanhas na TV, no rádio e nos outdoors? Muita gente era contra tudo isso! Educação sexual nas escolas, então, nem pensar!

       Como eu escrevi acima, cada um de nós que viveu aqueles dias tem coisas pra contar. São centenas de casos, de dramas, de lágrimas e de perdas. Tenho uma grande amiga que perdeu o filho e o irmão para a Adis. E meu respeito por sua história é imenso.  

       Na primeira vez em que fui a San Francisco, a cidade estava linda como sempre, mas estava triste. Os bares na Castro Street – reduto gay de uma cidade muito gay! – estavam vazios, melancólicos, com um cliente ou outro. João e eu conversávamos com os “barmen” e ele nos relatavam como as pessoas estavam morrendo naquele ano de 1987. 

       Eu já trabalhava no jornal O Estado de S. Paulo e estava diretamente ligado a tudo o que se divulgava sobre a Aids, isto é, eu lia em primeira mão, como se dizia à época, antes que a notícia chegasse às bancas no dia seguinte. Quando me lembro daqueles dias de tanta apreensão, dúvida e medo, não consigo entender a moçada que marca encontros pela internet “a fim de se contaminar”, transando com pessoas com o vírus, numa espécie de roleta russa. Isso existe!

       É certo que hoje a Aids é uma enfermidade controlada, e o tratamento pode levar a uma carga viral indetectável e não transmissível, mas mesmo assim… que brincadeira mais absurda e de mau gosto!

       Até que se perdesse (não sei se aconteceu!) a mania de se chamar a doença de “praga gay”, “câncer gay”, “castigo dos céus” e outras nomenclaturas tão ou mais absurdas, muita água passou debaixo da ponte. Houve um prejuízo muito grande em face de tudo o que se havia conquistado nos anos 70 em termos de liberdade, costumes e aceitação. A Aids fez com que voltássemos no tempo e tivéssemos que, de novo, sentir vergonha e culpa. Dessa vez por “estarmos espalhando um vírus no planeta”.

       Lembro que a mãe de uma amiga minha disse à filha, quando soube que ela ia almoçar comigo: “Cuidado para não pegar Aids, hein”, num misto de veneno, maledicência e ignorância. Eram as coisas que ouvíamos – ou não ouvíamos, porque eram ditas à boca pequena.

       Até que se constataram pessoas morrendo por transfusão de sangue contaminado ou por objetos não esterilizados, pensou-se que o sexo entre homens fosse o único meio de transmissão do vírus.

       Estima-se que, nesses 40 anos, cerca de 34,7 milhões de pessoas tenham morrido de Aids em todo o mundo. Pensemos nessas almas, que, no melhor de suas vidas, foram pegas por uma doença então terrível. Pensemos nelas com carinho e respeito. O sofrimento foi sobre-humano, basta que vejamos vídeos antigos e matérias dos jornais da época. Aquilo tudo não pode e não deve ser esquecido.

       Como eu já disse, são muitas as histórias. Eu contei apenas um pouco do muito que tenho guardado na memória.

       Em tempo: João morreu muitos anos depois (nós nem estávamos mais casados) e não foi de Aids. Ele nunca me contaminou.  

                                  

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

4 Comments

  1. Que relato, professor! Não podemos e não devemos simplesmente esquecer – como dizem os mais novos, “deixar passar batido”.
    Me lembro de muita coisa, também! Li, assisti, leio e assisto sobre o assunto.

  2. Suzy Aparecida Colli disse:

    Querido, apesar de também ter vivido esta época, sou sincera em reconhecer que não consigo sequer imaginar uma gota de tudo que todos passaram…
    Mas lendo seu relato tão bem colocado, me vieram lágrimas nos olhos e uma empatia muito grande por todos…
    Obrigada meu lindo!

  3. Baltasar Pereira disse:

    Bela e Triste Crônica que nos remete ao passado e ao presente também, pois o HIV ainda continua embora controlado e com medicamentos.

    Lembro-me da Época em que surgiram os primeiros casos e o medo e o Preconceito que se instalou no Mundo.

    Retrato de um assunto Mundial e como ele intervinha em nossas Vidas Privadas.

    Triste as Perdas vividas pelo Autor desta Crônica ,como as de tantas outras pessoas,mas ao mesmo Tempo mostra o seu Amadurecimento para os embates da Vida.
    🤗🤗

  4. Clarice keri disse:

    Ótimo relato, me faz pensar que não sabemos e nem conhecemos quase nada.

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