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INFÂNCIA

“Toda minha infância está presente. / É como se fora alguém. / Tudo o que dói nesta noite, / eu sei,/ é dela que vem” – Emílio Moura (1902-1971), poeta brasileiro.

       Acabei de reler “Infância”, de Graciliano
Ramos, livro de 1945, uma coletânea de contos sobre os primeiros anos de vida do autor alagoano. As histórias relatam episódios dolorosos do menino no sertão nordestino – uma vida dura, repleta de “lições duras” no caminho do protagonista (o próprio autor) rumo à fase adulta. (Como não se emocionar com o episódio relatado em “Um Cinturão”, por exemplo?)

       É um livro bonito, apesar de triste, e a gente acaba pensando em tanta coisa que foi e que (não) passou! Quem não tem memórias boas e doloridas de sua infância? Fechei o livro e mergulhei um pouco nessas lembranças que teimam em voltar sempre, como um baú que se carrega nas costas e cujo peso parece não diminuir com o tempo.

       Quando eu era menino, vivia com minha família em bairros da periferia. Mudamos muito em função do trabalho de meu pai. Estudei em várias escolas, o que me deixava cada vez mais tímido – eu detestava entrar numa classe onde os amigos já se conheciam e eu era o novato. Não conhecia os professores, não conhecia a escola em si, não conhecia ninguém. Vontade enorme de chorar e voltar pra casa. Não voltava. Acaba fazendo amigos e a vida seguia.

       Brincávamos muito na rua, mas éramos muito bem vigiados por minha mãe, que não nos perdia de vista. Muito futebol, muitas roseiras amassadas pela bola, muita bronca dos pais e das vizinhas que cultivavam essas rosas com muito carinho. A hora de ir pra escola, contudo, era hora de ir pra escola! Iam todos pra casa tomar banho, almoçar, e vestir o uniforme que a gente usava – camisa branca e calça cinza nas escolas estaduais; camisa branca e calça azul-marinho, nas municipais. Os aventais vieram mais tarde.

       Respeitávamos os professores como “segundos pais” que tínhamos – e a eles devíamos explicações por não termos feito a lição, por termos tirado notas baixas ou por não nos comportarmos direito em sala de aula. E a gente se apaixonava pela professora ou pelo professor. Guardei algumas paixões por professores na minha vida escolar. Muito jovem, eu não sabia lidar com isso… só sabia que não podia falar com ninguém sobre o que eu estava sentindo. Normalmente, eram homens bonitos, atenciosos e que passavam certa autoridade.

       Quando eu era menino, a molecada arranjava – não sei como – revistinhas pornográficas europeias, que passavam de mão em mão, ficavam dias na casa de cada um, escondidas no meio dos livros e das pastas de escola. Eram o nosso canal com o “sexo virtual” muito antes da internet.

       Minha mãe possuía dois primos pelos quais eu nutria um tesão danado. E era um prazer e uma alegria quando diziam que eles iriam lá em casa. Eles eram casados, mas eu era apaixonado por ambos.

       Houve um vizinho de meus avós – um rapaz de uns 15 anos – que tentou me molestar, pois os pais trabalhavam e ele ficava sozinho em casa. Eu tinha sete anos e apaguei da minha memória o que aconteceu depois. Foi minha avó, muitos anos mais tarde, quem me disse que eu saí correndo, e meu pai foi falar com o pai do fulano. Era um rapaz feioso, bem feioso! E escroto!

       Foi na minha infância que sofri os primeiros “bullyings” por parte de meninos mais velhos, e o motivo foi ridículo: eu era estudioso, tirava boas notas… só podia mesmo ser veado!

       Eu e meu irmão do meio ajudávamos minha mãe na limpeza da casa. Para ele, minha mãe comprava times de futebol de botão; para mim, ela dava dinheiro e eu ia à banca de jornal comprar a Revista Placar. O futebol, naqueles tempos, era uma diversão e um escapismo. Hoje, ainda bem, não preciso mais dele!

       Lembro-me de que as famílias se visitavam bastante aos domingos. Almoços com muita macarronada, bife à milanesa, refrigerantes (que a gente só tomava naquele dia) e sorvete (quando havia dinheiro; senão a gente chupava laranja mesmo). Tios, tias, primos – eram muitos, e nem todos deixaram boas lembranças.

              Cercado pela homofobia daquela gente, eu me encolhia cada vez mais e canalizava minha vida para a escola e para o futebol com os amigos do bairro. Embora esticasse os olhos para um vizinho ou outro mais bonito e atraente, eu ficava somente no desejo. Até a masturbação veio tarde na minha vida! Eu era o meu maior repressor.

              Havia um tio, bem seco e frio, incapaz de um sorriso ou de uma palavra amiga para os sobrinhos. Ele possuía um certo desprezo por mim, era muito evidente – mas isso longe de meus pais, que fique claro! Ele não seria capaz de fazer as “brincadeiras” e comentários que fazia na minha frente se meus pais estivessem junto. Havia sempre uma risadinha, sempre uma palavra para me desqualificar diante de meus irmãos e primos.

       Naqueles tempos, nós nos víamos com certa frequência. Eu procurava me afastar, ficava em silêncio, pois havia aprendido que os adultos mereciam respeito… mas aquele meu tio não merecia respeito nenhum! Um cidadão estranho, incapaz de uma gentileza. Minha mãe sempre dizia que seu cunhado era “esquisito”.

       A vida tem caminhos bem interessantes. Acontecem coisas que parecem ficção, mas que são a pura realidade. Esse meu tio demorou-se para casar. Quando o fez, encontrou uma mulher muito simpática, divertida e querida, com a qual minha mãe se dava muito bem. (Infelizmente, essa minha tia morreu muito cedo.) Bem, ela e o marido tiveram apenas um filho. Adivinharam? Esse único filho é gay.

       Nunca vi o ditado “Não cuspa pra cima porque cai na cara” ser tão bem cumprido! Quando meu primo – dez anos mais novo que eu – me procurou para conversar sobre sua própria homossexualidade, enxerguei a ironia de tudo aquilo. Impressionante! Não sei se o homem aprendeu a lição, tendo o próprio filho gay em casa. Nunca mais o vi. Não o vejo há quase 30 anos.

       Houve outros tios que me marcaram dessa mesma forma: pela hostilidade, pela frieza e pela homofobia. E a gente não esquece esse tipo de coisa dentro da própria família.   

       Estive me lembrando dessas pessoas. São fantasmas que, de vez em quando, surgem diante de mim. Melhor seria se eu não me lembrasse deles…

Não lhes guardo ódio, mas gostaria de nunca ter conhecido esses senhores.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

5 Comments

  1. Não tive “bullyings” em casa, mas fora dela foram muitos! Aprendi a me defender graças a um grande “amigo” que me ensinou muitas e muitas coisas. Não o vejo há tempos – tenho uma vontade enorme em procurá-lo, creio que uma hora vai acontecer e não sei qual será a sua reação. Enfim!

  2. Suzy Aparecida Colli disse:

    Entendo seu sentimento, mas é claro que por esses momentos difíceis vc conseguiu “crescer” com sentimentos nobres e ser quem é hoje. Todos temos os momentos trevosos …é inevitável.

  3. Clarice keri disse:

    Muito bom poder expor certos sentimentos que não nos largam, e família sempre será nossa bagagem, crônica ótima.

  4. Marco Antônio Gonçalves disse:

    Entendo bem seu sofrimento meu amigo,existem tantas coisas entre o céu e a terra….

  5. Baltasar Pereira disse:

    Realmente carregamos para sempre em nossas memórias Pessoas boas ou más;situações e momentos de nossas Vidas desde a mais tenra idade que ficarão dentro de nós e em nossas lembranças para sempre.
    Como do nada muitas vezes surgem em nossa mente como uma onda que chega a praia trazendo recordações alegres e muitas vezes doloridas,mas que em meu caso de alguma maneira me amadureceram em alguns aspectos.
    Crônica cheia de sentimentos e emoções do Autor e que sentimos ao ler e sentimos em nós próprios com as nossas recordações.

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