Dos chamados Sete Pecados Capitais, apenas um deles não é visto com bom humor ou como piada.
Ninguém gosta do invejoso, assim como ninguém gosta desse rótulo. Invejar não é apenas desejar o que o outro possui: é querer que o outro não possua e não seja feliz com o que tem.
Vamos encontrar nosso protagonista chegando à boate sozinho, na esperança de encontrar alguém com quem pudesse passar a noite. Um corpo, um corpo qualquer que lhe arrancasse a solidão das entranhas por, pelo menos, uma noite! Qualquer um servia: jovem, velho, alto, baixo, magro, gordo, negro, branco, amarelo… só não queria voltar para aquele apartamento enorme sem ninguém.
Na verdade, o apartamento não era tão enorme assim… ficara grande demais para ele depois que o casamento de seis anos terminara. Viviam bem no início; vivam tranquilos, ele e o outro, um ano mais novo. Quando se conheceram, na casa de amigos, ele tinha 38; o outro, portanto, 37. Aproximaram-se, transaram na primeira noite, começaram um namorinho, a coisa evoluiu e foram morar juntos, sob o mesmo teto, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, até que a morte os separasse – e nem foi preciso que a morte interviesse.
O relacionamento foi tomando um rumo já conhecido, roteiro já visto: paixão no início, um grudado no outro, sexo a toda hora. Com o passar do tempo, o tédio; depois, a completa falta de novidade, as neuras de cada um e o silêncio quando o assunto não existia mais. Por fim, as traições para as quais faziam vistas grossas, traições nem sempre disfarçadas, nem sempre discretas. Durante todo esse tempo, o mais velho engoliu em seco o orgulho e, principalmente, o ciúme – tudo em nome daquilo que ele sentia e que insistia em chamar de “amor”! E em nome desse sentimento, muita coisa foi feita das quais se arrependeu depois.
Quando percebeu que a crise não tinha jeito, porque não era passageira, deixou aflorar todo o sentimento de posse que sempre sentira pelo namorado um ano mais novo. Um ciúme desconhecido por ambos. Um ciúme que assustou o outro e o fez querer pular fora do casamento com mais rapidez ainda. Perseguição, brigas, objetos atirados na parede, atirados no namorado, bebedeiras, tentativas de suicídio e, por fim, ameaça de matar o rapaz. Estava mais do que na hora, pensou o mais novo, de pôr um fim ao relacionamento doentio. E foi embora.
Num dia quente de verão, começo de janeiro, a ressaca do ano novo e suas entediantes comemorações, o mais novo chegou ao apartamento e começou uma conversa séria com o namorado. O ciumento, por sua vez, não quis ouvir, pois já sabia o rumo que aquele papo tomaria. Tentou evitar o que saiba inevitável – e foi assim que, de arma na mão, ameaçou o outro. Acabou pedindo desculpa, alegou que tinha perdido a cabeça etc. O mais novo, mais assustado do que nunca, dividiu tudo com amigos e parentes. O outro nada fez. A separação foi dolorida, arrastada, dramática, uma novela. Comédia para alguns vizinhos e tragédia anunciada para os amigos. Como não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe, a coisa acabou. E aqui está ele, o mais velho, o ciumento, na boate, querendo encontrar alguém.
Quando soube que o ex estava lá com o namorado, sentiu ódio e saudade, e preferiu que não estivessem os três no mesmo ambiente. Conseguiu disfarçar, dissimulou e engoliu mais aquele desaforo por parte da pessoa que vivera com ele por seis anos. Jurou para os amigos que o que ficara eram apenas a amizade e a gratidão pelo tempo que haviam passado juntos. Sem ressentimentos.
A pior mentira é a que se conta para si mesmo, diz o ditado. E ele, por mais que quisesse se livrar dos dias passados, era consumido pela lembrança e pela saudade. No caminho para o banheiro, teve de passar perto do ex e do namorado deste. O rosto queimava-lhe, talvez numa febre de 40 graus. Controlou-se, sorriu para o outro quando foi visto e deu-lhe um abraço forte. Cochichou-lhe um elogio no ouvido e aproveitou para sentir mais uma vez o perfume tão familiar. Várias imagens lhe vieram à mente, imagens bobas e corriqueiras: os jeans do outro na máquina de lavar; os óculos ao lado de um livro; as camisas brancas, vermelhas e azuis no guarda-roupa; os tênis sempre organizados; os perfumes na pia do banheiro, os livros de literatura brasileira, os iogurtes de morango na geladeira…
Fez um esforço enorme e conseguiu ser simpático ao namorado do outro. Afastou-se deles, mas antes deu uma olhada pro casal e não sentiu o chão quando os namorados trocaram um beijo na pista de dança. A cabeça dele começou a doer, sentiu uma certa tontura com a música alta da boate. Chegou ao banheiro e sentiu náuseas. Olhou-se no espelho e viu o próprio rosto pálido, sem cor, o suor frio na testa. Dor no estômago.
Lavou o rosto com água gelada e nem viu o menino bonito que lhe dava bola pelo espelho. De lá, foi diretamente ao bar com a intenção de pegar duas cervejas, uma gentileza que sentiu vontade de demonstrar. Lembrou-se perfeitamente da marca favorita do outro – como não lembrar? Só não sabia a marca preferida do namoradinho. Quem se importava? Pediu duas latinhas, depositou-as no canto do balcão e abriu-as. Na agitação do lugar, ninguém notou quando ele tirou do bolso um envelope com um pó branco e despejou metade numa latinha e metade noutra.
Sorrindo e simpático, ele levou as cervejas para o meio da pista. Os dois rapazes, apaixonados, agradeceram pela gentileza. Tomaram o primeiro gole e logo esvaziaram as respectivas latinhas. Primeiro, a náusea e a tontura; depois, a escuridão total.
Dois homens mortos na pista de dança – mais do que o suficiente para acabar com a reputação de qualquer boate.
4 Comments
Uau…que história! Me senti lendo e rodando em vertigem, junto com as personagens!😵💫
Caramba… a minha cabeça deu nó , triste o fim! Rodopiei e entrei na história, imaginei muita coisa, muita mesmo.
Que história com um final triste! Mais um belo texto, Vitão. Parabéns e um forte abraço, Bob
Uma história e tanto, triste para todos os envolvidos, estranho você escrever um enredo tão forte, mas gostei bastante, parabéns e obrigada.