Recebo o casal de amigos na noite de sábado. Havíamos combinado uma pizza num restaurante qualquer perto da minha casa. Estou rodeado de boas pizzarias. Decidimos, por fim, pedir pizza e comer aqui mesmo, sem eventuais filas e possíveis esperas por mesa. Não temos mais paciência para esse ritual.
Eles chegam e o porteiro os deixa subir – são velhos conhecidos no meu condomínio. Frequentam a minha casa faz mais de 30 anos. Tocam a campainha. Quando abro, encontro os dois exatamente como pensei: roupas pesadas e casacos e cachecóis, como se estivessem vindo ou indo à Sibéria. Dou risada, ambos detestam passar frio.
Abraço os dois. Sinto uma alegria genuína em recebê-los e sei que a noite será divertida com os casos que vão me contar e com as contradições de um e de outro. “Não foi bem assim… ele contou pela metade”. “Claro que foi… você é que não lembra mais. Foi assim, sim!”. Vou rir enquanto estiver cortando minha fatia da pizza, me alegrando com a amizade de tão longa data.
São dois homens na casa de seus 70 anos. Um tem 74; o outro, 72. Estão juntos há mais de 35 anos, o que, para um casal gay, é praticamente a história do mundo. Conheceram-se por meu intermédio e dizem que sou o padrinho do casamento. Quando alguma coisa desanda entre eles, ambos brincam que sou o culpado e eu digo: “A garantia expirou: não dá mais pra devolver, nem trocar de parceiro. Agora, aguentem!”.
Sei que não verei mais mãos dadas ou carícias entre eles como eu via há alguns anos; sei que não trocarão palavras doces como antigamente e sei também que, hoje, perdoam com mais facilidade as falhas um do outro. Não sei se o amor se foi ou se ele se transformou em cumplicidade, amizade, companheirismo e até um certo comodismo da parte de ambos. Ainda presencio um olhar de ternura dissimulada de um para o outro; a preocupação com a saúde de um, o horário do remédio do outro. Tudo vira piada entre nós – o remédio pra pressão também. “Ah, que saudade dos meus vinte anos… eu nem sabia o que era pressão alta. Hoje, uma derrota…”. Rimos os três e continuamos a comer nossa pizza.
Eles me contam das viagens que têm feito, das cidades eu têm conhecido, dos hotéis que têm frequentado, enfim, dos antídotos para uma vida monótona e sem graça que pode chegar para qualquer um.
Elogiam o vinho que comprei. Pedem para aumentar determinada música de determinado cantor. Um deles fecha os olhos – não sei se para saborear o vinho ou se viajando com a música. O outro faz uma cena em que finge ciúme (finge?): “Olha aí… lembrando certamente de algum namorado do passado. Cachorro!”. O outro nem lhe dá bola. Eu dou risada.
Esta noite de domingo me lembra de uma crônica do mestre Rubem Braga – “A visita do casal” – na qual o narrador (o próprio Rubem) relata suas impressões e emoções ao receber um casal de amigos em sua casa. A certa altura de seu texto, Rubem faz alusão àqueles casais que, aos olhos dos amigos, serão sempre casais, isto é, uma separação traria tristeza a eles e aos amigos também. “Preferimos que vivam mal, porém juntos; é mais cômodo para nós (…) Ficam ligeiramente absurdos sendo duas pessoas”.
Enquanto comemos, essa crônica do Velho Braga vem à minha mente. Guardo para mim a lembrança, não digo para eles. Observo os dois com carinho e respeito. Eles não adivinham o que estou pensando. Nem precisam.
A primeira pizza se vai, um censura o outro porque “comeu demais e vai dormir mal, tô avisando”. O avisado nem responde, estende o braço e alcança uma fatia da pizza que ainda está inteira. Por fim, diz: “Se eu for atrás de você, passo fome”. Não aguento e dou uma risada gostosa.
Sem perguntar nada, o que pegou a fatia de pizza serve outra pro namorado, que não recusa. E eu observo como a relação funciona entre eles. Anos de convívio, anos de lágrimas e de risos, de alegrias e tristezas, de ranhetices e abraços como a dizer “estou e estarei sempre aqui”.
Já quiseram se separar? Já. Eu me lembro bem da crise. Não se separaram. Talvez tenham visto que precisavam mesmo um do outro e vieram para este mundo a fim de se encontrarem. São dois homens, mas poderiam ser um homem e uma mulher ou duas mulheres. O sentimento seria o mesmo. Acho que existem mesmo aqueles que encontram sua “cara metade” neste mundo de tantos desencontros e desilusões.
Sou tirado de minhas reflexões pelo mais velho. “Você fez aquele doce de abóbora com coco e sorvete que prometeu pra gente?”.
Vou à cozinha e abro a geladeira. Volto com o doce nas mãos e vejo o sorriso dos dois.
Com a felicidade deles, me sinto feliz também.
1 Comments
Eles são a “tampa e o caldeirão!” Estão casados há tempos e não deixaram a mesmice tomar conta. Felicidades ao casal. As amizades serão eternas, isso quando há o respeito, mesmo que elas estejam distantes. Como é bom receber e ter amigos . Esta Crônica faz a gente refletir, e muito.
❤️🙏