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JOHNNY ALF

“Um dos mais talentosos e originais compositores da música brasileira, o carioca Johnny Alf (Alfredo José da Silva, 1929-2010) teve a sorte de nascer com uma voz e um dom musical raros. Mas, sendo negro, pobre e gay em pleno Brasil dos anos 50, estava destinado a jamais conquistar sucesso popular e sequer receber o devido reconhecimento crítico”. Assim, Nelson Motta inicia seu texto sobre “Ilusão à toa”, no livro “101 Canções que tocaram o Brasil”, de 2016.

Johnny Alf teve um começo de vida difícil. Ficou órfão de pai aos três anos de idade. Sua mãe era empregada doméstica e o criou sozinha. Os patrões dela, porém, pagaram os estudos de piano para o menino, embora não aprovassem a carreira em boates que ele, mais tarde, seguiria. A boemia nunca foi muito bem vista – antigamente, menos ainda.

Da música clássica, o jovem passou a se interessar por música popular americana – notadamente George Gershwin e Cole Porter. Aos 14 anos, na Vila Isabel, formou um conjunto com amigos. Foi uma amiga norte-americana que lhe sugeriu o nome artístico de Johnny Alf.

No fim da década de 40, resolveu viver da música, e seu estilo elegante e voz aveludada foram notados por grandes nomes da época – como Tom Jobim.

Depois de ter tocado com Dick Farney e Nora Ney, em 1952, foi gravado por Mary Gonçalves, que escolheu três músicas do rapaz: “Estamos sós”, “O que é amar” e “Escuta”. Veio para São Paulo em 1955, onde ficou até 1962, voltando ao Rio de Janeiro depois desse período. Em 1967, compôs “Eu e a brisa”, canção que concorreu no III Festival da Música Popular Brasileira, na TV Record, na voz da cantora Márcia. Mesmo eliminada, tornou-se um clássico e um dos maiores sucessos da carreira de Johnny. 

No livro “Johnny Alf – Duas ou três coisas que você não sabe”, de João Carlos Rodrigues, o compositor chegou a declarar: “Meu homossexualismo [sic] interfere como nuance que evidencia e policia meu comportamento junto às pessoas. É ele a ‘brisa’ do título da música, é ele o devaneio que inspirou a letra. Analise a letra e terás a sacação! Para um artista, o motivo de certas obras fica incrustado na pedra fundamental de sua personalidade e, com bastante inteligência, ele usa esse motivo num teor de simplicidade honesta, sem se revelar aos outros se é isso ou aquilo! A arte o faz.”

 

Vejamos uma passagem da canção:

 

“(…) Fica, ó brisa, fica, pois talvez quem sabe
O inesperado faça uma surpresa
E traga alguém que queira te escutar
E junto a mim queira ficar
Bem junto a mim queira ficar (…)”

 

Discreto, obviamente por causa da época em que vivia – muito mais conservadora e homofóbica do que agora –, o cantor e compositor sempre manteve sua homossexualidade longe dos holofotes e comentários das revistas de fofocas e das rodas de músicos. Faço aqui um exercício de imaginação: Johnny Alf vivia na noite, nas boates onde eram comuns a paquera, o flerte, a conquista, o álcool e os romances que duravam uma noite ou a vida toda. Tudo isso, claro, para os heterossexuais. Para um gay, a coisa devia ser bem mais difícil.

Nelson Motta comenta que Johnny lançou “Ilusão à toa” em seu primeiro disco solo – “Rapaz de Bem” – em 1961, quando “a homossexualidade, mais do que um tabu, era um crime previsto pela legislação então vigente no Brasil”. Mas a canção, informa o jornalista, era tão discreta quanto seu autor e “sem levantar bandeira alguma, ela se firma como uma grande canção de amor, acima e além do gênero dos envolvidos”.

A letra é bonita. Realmente, em sua superfície, não faz apologia a nenhum “tipo de amor”, mas ao romantismo em si. Contudo, se a gente presta atenção a alguns versos, consegue perceber que Johnny faz alusão (ainda que dissimulada) ao segredo que carrega: “É um amor que guardo há muito dentro de mim”; ri, talvez um sorriso melancólico, ao se dar conta da impossibilidade de revelar esse amor: “Mas embora eu te tenha perto/Eu acho graça do meu pensamento”; e se conforma em amar sem ser correspondido: “A conduzir o nosso amor discreto / Sim, amor discreto pra uma só pessoa / Pois nem de leve sabes que eu te quero / E me apraz essa ilusão à toa”.

A desesperança do eu-lírico já se faz notar no título. “Ilusão” remete àquilo que não vai se concretizar, é apenas desejo e sonho, enquanto a expressão “à toa” dá uma ideia do que não merece atenção, é frugal, simples, aquilo que é “melhor deixar pra lá”.

Muita gente boa gravou a música: Elizeth Cardoso, Elis Regina, Sylvia Telles, Emílio Santiago, Isaurinha Garcia, Gal Costa, Caetano Veloso, Fafá de Belém e Marcos Valle, entre outros.

Vários críticos afirmam que Johnny Alf foi o verdadeiro pai da Bossa Nova. A internet informa que, em seus últimos anos de vida, ele se tornou recluso devido a problemas de saúde. Ainda assim, compareceu à abertura das comemorações pelos 50 anos da Bossa Nova, na Oca, em 2008, e, em janeiro de 2009, no Auditório do Sesc Vila Mariana, em São Paulo, ao lado da cantora Alaíde Costa.

Como não tinha parentes, vivia em um asilo em Santo André. Morreu nessa mesma cidade, aos 80 anos, no Hospital Estadual Mário Covas, onde, durante três anos, combateu um câncer de próstata.

Dizem que Tom Jobim admirava Johnny Alf a ponto de lhe dar o apelido de “Genialf”.

 

        ILUSÃO À TOA

 Eu acho engraçado
Quando um certo alguém
Se aproxima de mim
Trazendo exuberância
Que me extasia

Meus olhos sentem
Minhas mãos transpiram
É um amor que eu guardo há muito
Dentro em mim
E é a voz do coração que canta assim
Assim

Olha, somente um dia
Longe dos teus olhos
Trouxe a saudade do amor tão perto
E o mundo inteiro fez-se tão tristonho

Mas embora agora eu te tenha perto
Eu acho graça do meu pensamento
A conduzir o nosso amor discreto
Sim, amor discreto pra uma só pessoa
Pois nem de leve sabes que eu te quero
E me apraz essa ilusão à toa

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

4 Comments

  1. Clarice keri disse:

    O que disser depois de você ter dito tudo? Um desperdício de talento por conta de uma sociedade preconceituosa, triste, mas gostei de conhecer essa história, obrigada.

    • Confesso que não o conhecia! Fui pesquisar a sua obra, é fantástica. O “pai” da Bossa Nova.

      • Baltasar Pereira disse:

        Nossa ,muito interessante esta Crônica. Falar de um Cantor e Compositor que escrevia tão bem tanto quanto devia cantar assim me sinto envergonhado em realmente quase nada saber sobre o mesmo.
        Que História ou melhor Histórias o mesmo deve ter passado por ter sido Homossexual em uma Época muito complicada.
        Que Talento Musical ele tinha.
        Achei Triste o final de sua Vida em uma Casa de Repouso,mas sempre fico triste com Partidas Finais.
        Bela Homenagem a Johnny Alf.
        Ah! Linda a composição “Ilusão à Toa “

  2. Angelo Antonio Pavone disse:

    Olá Prof. Vitor
    Brilhante texto sobre esse gênio da Bossa Nova.
    Irretocavel !!!
    Parabéns

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