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JUCA

Os dois se encontram em um restaurante no centro velho da cidade, perto da Faculdade de Direito no Largo de São Francisco. Um tem 55 anos e o outro, 54. Conhecem-se desde 1975, quando o mais novo foi morar no bairro em que o mais velho nasceu. Eram garotos de 11 e 12 anos.

Ficaram muito tempo sem contato. Cresceram, tomaram seus rumos, seguiram suas vidas e, em tempos nos quais até ter telefone era um luxo, nunca mais se viram – a não ser uma vez, no metrô, os dois apressados: o mais velho saindo do cursinho, o mais novo saindo do trabalho.

Por causa das redes sociais e por causa de amigos em comum, acabaram conseguindo os telefones um do outro e combinaram de jantar “qualquer dia desses”. E esse qualquer dia acabou chegando, embora nenhum dos dois acreditasse que tal encontro pudesse ocorrer depois de tantos anos.

O mais novo chega primeiro. Pede uma mesa para dois e solicita do garçom um refrigerante bem gelado, pois a noite está quente. Na meia hora em que fica sozinho, lembra-se de muita coisa, de tanta coisa da infância que, por alguns segundos, tem uma certa vontade de chorar ali mesmo. Consegue se recompor e toma sua bebida gelada enquanto espera pelo outro.

O mais velho chega apressado, desculpando-se pelo atraso. É médico e teve de atender um último cliente no começo da noite. Depois do aperto de mão, de vagos “Putz, quanto tempo!”, “Como você está?”, “Você está ótimo!”, o mais velho se senta e pede também um refrigerante, pois está de carro e não vai ingerir bebida alcoólica.

Fazem perguntas sobre os respectivos familiares, dão respostas superficiais sobre as mães de cada um (os pais faleceram), riem um pouco sobre como elas costumavam falar horas a fio quando se encontravam e acabam pedindo a comida.

O encontro é tranquilo e morno enquanto saboreiam os pratos que pediram. A noite está calma e quieta, o restaurante começa a ficar cheio com as pessoas que saem do trabalho e querem jantar. Depois de terminar sua latinha de refrigerante, o mais velho chama o garçom e pede outra. Dirige-se ao seu acompanhante e, mostrando-lhe seu celular, diz:

– Olha o meu filho! O safado está com dez anos e é terrível! Sempre quis um garoto – claro que, se viesse menina, eu ficaria feliz também, mas um garoto sempre foi o meu sonho. Quis terminar a faculdade primeiro. Demorei para criar coragem de casar, constituir família, virar um homem de respeito – diz rindo. E você, você se casou?

O mais novo levanta a cabeça do prato com calma. Pega o guardanapo de sobre as pernas, limpa a boca lentamente, depõe o pano sobre a mesa e fala olhando nos olhos do outro:

– Você virou um homem de respeito… que bom! Demorou, mas virou! Eu… bem, eu acho que nunca serei um homem de respeito. Não tenho esposa, não tenho filhos. Não constituí a tal da família, não sou como você. Aliás, você sempre esteve certo sobre mim, sabia?

– Como assim? – quer saber o outro.

– Você se lembra de como você e outros meninos da rua me tratavam? Lembra-se das coisa que você falava de mim e que vieram me contar?

– Do que você está falando, criatura?

– Sou gay, rapaz. Sempre fui. E era por isso que seus comentários doíam tanto. É por isso que eu me retraía cada vez mais quando vocês todos conseguiam revistinhas pornográficas e se reuniam para ficarem vendo mulheres peladas. É por isso que eu me sentia cada vez mais isolado, cada vez com mais vergonha quando você e seus irmãos tiravam sarro de mim e me punham apelidos ofensivos. E eu rezava para que isso não chegasse aos ouvidos de meus pais.

O outro, homofóbico desde sempre, tenta encarar com naturalidade a conversa, mas é evidente a transformação em seu rosto.

– Foram tantos dias de vergonha, de mágoa, de retraimento, de timidez, de recolhimento e de sensação de marginalidade. Eu não era como vocês, eu não tinha os mesmos gostos e merecia o que hoje se chama de “bullying”. A palavra pode ser nova, meu caro, mas a prática é velha como o mundo.

O mais velho, pego de surpresa, não tem o que falar. Esboça um pedido de desculpas por tanta coisa de tanto tempo atrás.

– Não peça desculpas, se você não tem essa intenção. Na verdade, nem vim aqui ouvir desculpa nenhuma. Vim porque você insistiu em nosso encontro para falarmos de coisas do passado e esse blá, blá, blá todo que ressuscita com redes sociais. Um saco! Essa mania de tentar recuperar o que já foi! Vim aqui para um jantar com alguém que, bem ou mal, faz parte de minha infância com seus dias felizes e infelizes.

Toma mais um gole da bebida e prossegue:

– Lembra-se de quando você pediu para que a turminha da rua de baixo me desse um cacete? Quando lhe perguntaram por quê, você respondeu: “Porque não gosto daquele veadinho, mas minha mãe é amiga da mãe dele e não posso brigar com ele”. Você não sabia que eu sabia, né? Os meninos da rua de baixo, que estudavam com você, tornaram-se mais meus amigos que seus com o passar do tempo e com tanto futebol de rua que a gente jogava. Sim, porque eu era um “veadinho” que jogava muita bola, enquanto você, constantemente atacado pela bronquite, nem sempre podia se juntar a nós. Então, eles vieram me contar esse seu gentil pedido. Eu tinha 13, você tinha 14 anos.

“Um deles me disse que ainda lhe respondeu: – Bater nele por quê? O cara é legal… – e a coisa nunca aconteceu. Ficamos, eu e você, sempre na iminência de uma briga feia, coisa de moleque, de se agarrar e arrancar sangue do nariz do outro. A tensão entre nós sempre existiu, penso que a raiva também. Sua homofobia, termo que não se usava à época, lhe deixava cego. E me pergunto quantas vezes você deve ter sentido isso por outras pessoas no decorrer de sua vida…

“Sou homem como você – também tenho barba no rosto, um pau entre as pernas, e o que faço e com quem faço entre quatro paredes é problema meu e diz respeito somente a mim. Aqueles dias de nossa infância, embora nunca fossem motivo para uma terapia, também nunca saíram de minha lembrança. Olho para eles com certa melancolia, uma certa tristeza, porque sei que outros tantos iguais a mim estão diariamente encontrando outros tantos iguais a você. Outros tantos meninos serão surrados e ‘postos em seu devido lugar’ por encomendas como a que você fez aos garotos da rua de baixo.

“Não sei se você é mais homem do que eu apenas porque tem uma esposa e filhos. Nesses anos todos, o seu caráter melhorou? Você continuou tramando nas sombras? Tem sido dedicado e um bom médico aos seus pacientes homossexuais? Espero realmente que sim… sabia que o Brasil é o campeão mundial de linchamentos de gays? Não sabia? Existem milhões de pessoas como você por aí, meu caro.

“Às vezes, prefiro crer que seu ódio por mim tenha sido provocado por pura e total incompatibilidade de gênios, pelo “santo que não bateu”, pela rivalidade de times e essas coisas de meninos. Ainda assim, tenho certeza, no meu íntimo, que muito de sua raiva estava ligada à minha homossexualidade que você, inteligente, sacou de longe”.

Toma calmamente o restante de sua bebida e olha para o outro. Nota que entre os dois nada mudou da infância até agora. O olhar do mais velho é o mesmo de antigamente; o olhar do mais novo é de indiferença e tédio. Ele levanta a mão e pede a conta ao garçom. Nos minutos que se sucedem até que isso aconteça, um silêncio se instaura na mesa. Um não espera um pedido de desculpas; o outro é incapaz de fazê-lo.

Conta paga, o mais novo se levanta e diz: “Muita saúde para seu filho que, eu espero, seja hetero… para o bem dele”.

Lá fora, começavam a cair os primeiros pingos de uma bonita chuva na noite de São Paulo.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

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