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JULGAMENTOS

“Não julgueis: somos todos pecadores” – William Shakespeare (1564 – 1616), em “Henrique VI”.  

       O pai é mais bonito que o filho. Essa é a primeira coisa que noto.

       Numa tarde quente e cheia de tédio, entro num “aplicativo de caçação gay” a fim de uma aventura com alguém gostoso e bonito, sem compromisso, apenas a transa e, talvez, um papo depois, se a pessoa valer a pena. Na minha casa ou na dela, tanto faz. O importante agora é “achar alguém” que me atraia e que me ache atraente também, claro.

       Vou procurando entre tantos e tantos homens que estão com a mesma vontade que eu. Alguns nas proximidades – negros, brancos, loiros, asiáticos; olhos claros, olhos castanhos, olhos pretos; altos, baixos, meia-estatura, anões. Tem de tudo. E, em meio a tantas opções, encontro uma dupla composta por um pai e um filho! Os dois têm corpos lindos, malhados, bem cuidados. 

       De início, custo a acreditar que o sejam, mas a genética ali não mentiu e um é a cara do outro, só que separados, obviamente, pelos anos. Dizem que têm 53 e 23 anos respectivamente. Os dois têm corpos lindos, malhados, bem cuidados. Cabelos castanhos, olhos verdes, bocas bonitas e dentes perfeitos. São “liberais, curtem uma transa a três, gostam de tudo com outro homem, não têm preferência de idade, só de físico. Não curtem muito os musculosos bombados, também não gostam de mirradinhos, curtem pelos, mas não gostam dos ‘ursos’. Se a pessoa tiver um nível intelectual bom, melhor…”

       O papo continua, eu fico mais intrigado do que empolgado: como deverá ser essa relação? O que se passa entre esses dois? É possível uma relação familiar saudável na qual se vai para a cama com o próprio filho… e com o próprio pai? Imediatamente, penso na mãe do rapaz, isto é, na esposa do homem bonitão que me chama para uma transa a três com o próprio filho. Qual o papel dela nisso tudo?

       Claro que não sou ingênuo e sempre soube que isso existia e existe neste vasto mundo de tantas possibilidades de encontros e desencontros. É óbvio que, quando procuramos, podemos encontrar de tudo, pois a sexualidade humana é um campo mais rico do que imaginamos… mas devo admitir que uma coisa é a teoria, é “saber que isso existe” – e outra é tomar contato com essas pessoas.

       Lembro-me de que (eu ainda era bem jovem) uma vez conheci um homem casado que fazia troca de casais com a esposa. Lembro-me de ele ter me dito que estava saindo comigo porque “ainda não experimentei transar com um outro homem e quero saber como é”. Transamos, foi bom, e acho que eu o satisfiz. Nunca mais o vi, já faz muitos anos, mas nunca mais esqueci sua gentileza, educação e classe. Espero que ele tenha continuado sexualmente feliz depois daquilo.

       Nunca, porém, fui abordado por uma dupla como essa – pai e filho que são amantes um do outro. Apesar das fantasias que começam na minha cabeça, uma série de barreiras se levantam enquanto estou diante do meu celular, trocando mensagens com os dois. São barreiras religiosas, morais, éticas. Barreiras enraizadas em mim das quais nunca tive muita consciência até este momento.

       O corpo se empolga enquanto escrevo e digo que eu gostaria de encontrar os dois nesta tarde chata e quente na cidade. “Realmente, poderíamos ter uma tarde muito boa,  juntos”, o pai me responde. “Moramos perto de você – apartamento grande, cama “king”, ar condicionado no quarto e muita sacanagem. Seria uma delícia”.

       Fico com dezenas de perguntas na cabeça. Sei que não é hora de fazê-las (talvez depois da transa?), pois eles nem me conhecem e talvez me considerem um xereta em vez de um cara interessante. Como lidam com isso? Há ciúme entre eles? Sabem separar a cama da hierarquia que deveria existir entre pai e filho ou isso já se perdeu? Como tudo começou? Quem deu o primeiro passo? Teria sido iniciativa do mais velho ou o filho foi o mais ousado?

       Engraçado como nossa vaidade nos leva a condenar comportamentos que não nos são familiares. Sou melhor do que eles? Mas eu não estou no mesmo aplicativo procurando o prazer como os dois estão? Posso julgá-los a partir de meus princípios e negativas, mesmo sentindo uma vontade intensa de encontrá-los para ter essa experiência com pai e filho? Com que direito posso condená-los e sair do aplicativo e ligar para um amigo e compartilhar com ele, dizendo “você não sabe a aberração que acabei de encontrar”?  Tenho esse direito? No quê, sou melhor que eles? Se a fantasia existe em minha cabeça, a única coisa que me separa dos dois é a distância.

       Quase nunca é fácil conviver com os instintos mais primitivos, aqueles que quase nunca vêm à tona porque nós os sufocamos e não os deixamos “respirar”. Vem-me à mente o ensinamento budista: “Nunca pare de aprender, porque a vida nunca para de ensinar”. É isso!

       Eles gostaram de mim. Se eu quiser, posso descer agora para a garagem, pegar meu carro e ir para o prédio onde eles me esperam. Se eu assim quiser, poderei ter minha tarde de sexo e fantasias com esse homem tão bonito e seu filho (bonito também!) porque me julgo livre – sou solteiro, maior de idade, dono do meu nariz. Será que sou? E todos os princípios segundo os quais fui educado e todos aqueles tabus que ainda existem na minha cabeça? Liberdade é ilusão.

       Se eu for, obviamente a história será motivo de interesse na roda de amigos no próximo jantar da turma. Todos vão ouvir com atenção pelo ineditismo do fato. Duvido que alguém abertamente me censurasse.

       Chego à conclusão, porém, de que nem preciso da censura de meus amigos. Descubro que eu mesmo tenho dentro de mim freios que eu desconhecia. Sinto-me hipócrita e um falso moralista. E, de mais a mais, eles poderão continuar sem mim. Talvez até encontrem alguém melhor do que eu nesta e em outras tardes.

       Tenho que me decidir. Cobro isso de mim mesmo. Junto-me a eles em sua coragem ou recolho-me à minha covardia e à minha (consequente) frustração?

     

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

1 Comments

  1. Clarice keri disse:

    Ótimo texto, ótima reflexão sobre nossos próprios julgamentos e/ou preconceitos.

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