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LEMBRANÇAS DA “DISCO”

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           “O negócio da Disco Music é o som. Nas poucas vezes em que escrevi música com ênfase na letra, a gravadora me disse para parar porque a letra só atrapalhava” – Jean-Marc Cerrone, produtor musical francês.                                                                       

 

O rádio AM de minha mãe sobre a mesa da cozinha, perto da janela que dá pra rua. São mais ou menos 10h da manhã. Enquanto eu faço a lição de casa antes do almoço e de me aprontar para ir à escola, minha mãe lava a louça do café. Meu pai já foi trabalhar; meu irmão do meio está na escola (para minha inveja, ele estuda de manhã e tem a tarde toda livre) e meu irmão caçula, com três anos, brinca com seus carrinhos, sentado no tapete da sala.

A estação de rádio que minha mãe ouve é a mesma de toda manhã, bem como o programa e o apresentador. Lá pelas tantas, o homem anuncia as sete músicas mais pedidas, as “Sete Campeãs” do ouvinte. Eu tenho dez anos; estou sentado perto do rádio, fazendo alguma lição de matemática ou de “Língua Pátria”, como se falava na época, mas presto atenção às músicas que vão começar a tocar.

Entre uma tabuada e outra ou uma composição, paro para ouvir a lista das sete escolhidas. Sei que, no primeiro ou no segundo lugar, estarão minhas favoritas: ou “Rock the Boat”, com Hues Corporation, ou “Kung Fu Fighting”, com Carl Douglas. O ano é 1974. Eu nunca poderia adivinhar que essas duas canções ficariam na minha lembrança para sempre!

Minha mãe também gostava delas. Se eu não estivesse fazendo lição na cozinha, ela aumentava o volume do rádio quando tocavam e a casa se enchia de alegria. Ficava tudo mais alegre e a nossa vida perdia um pouco do peso daqueles dias. Eram tempos difíceis – meu pai era um operário, três filhos pequenos pra criar, a gente morando em Taboão da Serra porque foi lá que ele conseguiu um emprego. Eu estudava na Escola Estadual de Primeiro Grau António Inácio Maciel, estava na quarta série, era um bom aluno, mas detestava ir pra escola à tarde. Eu queria ficar em casa, ver desenho, ver seriados, e não ir pra aula depois do almoço. Acho que minha mãe não conseguiu vaga pra mim na parte da manhã… acho que foi isso.

Dinheiro contado, minha mãe muitas vezes fazia a nossa roupa ou reformava alguma que ganhava de parentes cujos filhos haviam crescido. E aqueles dias ficaram moldados com essas duas músicas que citei acima.

Claro que eu já olhava para os amigos de meu pai. Se não me passava pela cabeça o que era sexo, já havia em mim um garoto cuja atenção era chamada pela masculinidade daqueles homens que trabalhavam com ele e que às vezes iam até lá em casa tomar uma cerveja. Eu já me sentia diferente dos outros na escola e na família.

Não tínhamos muito dinheiro sobrando para lazer e coisas do tipo. Comprar um disco, só no fim do ano, quando o pai da gente recebia o 13º salário e tudo era festa. Então, gostando de música como eu já gostava, o negócio era esperar tocar no rádio mesmo. E fim de papo.

Enquanto isso, enquanto eu fazia minha lição de casa na mesa da cozinha perto do rádio, uma verdadeira revolução musical acontecia bem longe dali, na América do Norte. Na ressaca do Movimento de Stonewall e no esgotamento da Guerra do Vietnã, os anos 70 começaram com muitas mudanças. O término dos Beatles, posso calcular, deve ter sido muito triste para muita gente. Galpões eram alugados em Nova York para festas nas quais todos eram bem vindos – incluindo aí os gays, os negros e as mulheres mesmo desacompanhadas. Como eram ambientes fechados e festas organizadas por gente amiga – que convidava o amigo do amigo do amigo –, havia mais liberdade e, o mais importante, sem que se precisasse gastar muito dinheiro – tocava-se o disco e a moçada se deliciava na pista.

No livro “Disco”, de Johnny Morgan, a cantora Gloria Gaynor assina o prefácio e escreve: “A Disco Music foi produzida por um declínio econômico que varreu o mundo no começo dos anos 70. E isso gerou uma profunda necessidade de se procurar uma válvula de escape. E qual o alívio que se podia encontrar? As pessoas não tinham grana para sair para jantar, ir a um teatro, ver um show ou fazer essas coisas que diminuam a pressão, a tensão e o estresse do dia a dia porque isso custa dinheiro (…) A pista de dança era barata e as pessoas se divertiam muito. Nosso trabalho era dar a eles o melhor que o entretenimento pode dar a uma pessoa: umas miniférias do quotidiano. E era exatamente isso o que as discotecas faziam”.

Muito menino, eu não podia imaginar o que eram esses lugares, o que significava para essas pessoas o fato de poderem extravasar suas frustrações, medos e preocupações na pista de dança. Mudanças estavam acontecendo – não somente na música, mas no vestuário, na dança, no comportamento das pessoas. Os ecos disso, obviamente, estavam chegando aqui. Timidamente, mas estavam chegando. Rádios como a Excelsior (“A máquina do som”) e a Difusora faziam esse papel.

LPs começaram a ser lançados. Lembro dos discos da  K-tel, e quem tem a minha idade vai lembrar também: eram discos com 18 ou 20 músicas, mas, lógico, todas cortadas, porque um disco de vinil não comportava tanto. E, é claro,  muitos de nós só foram descobrir isso mais tarde – ou com os discos originais dos cantores ou com a chegada dos CDs anos depois, que traziam as músicas na íntegra. Lógico também que eu era doido pra ter os “compactos” de “Kung Fu Fighting” e de “Rock the Boat”.

Tínhamos uma vitrolinha portátil da Philips em casa. Azul, parecia uma maletinha escolar quando fechada. Era muito bonitinha. Lembro que ela nos foi útil por muitos anos. Lembro também que minha mãe a deu para uns primos dela bem pobres do interior.

Está na minha memória a construção e inauguração da Praça 31 de Março, em Taboão. Eram os anos do governo militar e nada mais natural que pusessem esse nome na praça. Quem passa pela BR 116 – Régis Bittencourt – pode vê-la. Bem, como boa cidade do interior, era lá que as pessoas iam nas noites de verão – namorados, famílias inteiras, rapazes e moças à procura de namoro e os moleques da rua. No alto-falante, sempre músicas até mais ou menos as 10h da noite. Eu vivia lá porque eles tocavam as músicas do rádio e a gente ficava sentado nos bancos de cimento da praça, tomando sorvete ou comendo pipoca, vendo as pessoas passarem. E essa vida simples ia em frente.

Mudamos de lá no ano seguinte. Voltamos a São Paulo, na Freguesia do Ó, e minha vida sofreu grandes mudanças, principalmente no que se referia à escola. Novo colégio, novos amigos, novos professores… uma casa diferente na qual não tínhamos a mesma janela para a rua. Muitas mudanças mesmo!

Os anos da Disco Music continuavam. Agora, eram os LPs de novelas que traziam os sucessos das discotecas de Nova York e da Califórnia, da costa leste e da costa oeste. E a gente ia elegendo as preferidas, ia guardando na memória lugares, pessoas e fatos associados às músicas para nunca mais esquecer de tudo aquilo. Eu nunca mais me esqueci.

Em 1977, nossa professora de inglês nos ensinou a letra de “Dancing Queen”, do ABBA. Foi a primeira música em inglês (de um grupo sueco!) que eu aprendi na vida. E era uma música Disco.

Segundo as revistas de fofoca, um tal de Studio 54 era aberto na rua de mesmo número em Nova York. A discoteca mais famosa do mundo! Frequentada por gente de cinema, da música, do teatro, da política, da moda… víamos as fotos do povo na rua pedindo pelo amor de Deus para que o porteiro as deixasse entrar. E a grande ironia, leio muitos anos depois, é que, segundo Ian Schragher, um dos donos, “a ideia era um nightclub baseado na diversidade, não na uniformidade. Ter ricos e pobres, negros e brancos, velhos e jovens dançando todos juntos aqui”. Até parece!

No Brasil, discotecas como a Papagaio Disco Club, a Hippopotamus e a Banana Power faziam sucesso…

Lembro da cantora Tina Charles no Brasil e de um especial dela na extinta TV Tupi.

Em 1978, chega aos nossos cinemas “Os embalos de sábado à noite”, que jogou o John Travolta lá em cima do estrelato, apesar da cara torcida de muita gente que não gostava nem dele, nem da música Disco. Com o filme, os Bee Gees voltaram com tudo também e tenho vontade de chorar quando ouço “Night Fever” por todas as lembranças que a música me traz: foi minha mãe que comprou o compacto porque adorava essa música. Na verdade, segundo dizem, a trilha sonora do filme é o disco mais vendido de trilhas de todos os tempos. Os produtores deram-se o luxo de incluir duas versões da mesma música – “More than a woman”, com os Bee Gees e com Tavares. Realmente, para quem gosta da Disco, a seleção é muito, muito boa. Conheço gente que foi ao cinema ver “Os embalos” vezes seguidas – cinco, seis, dez vezes! Uma loucura!

No mesmo ano, a Globo põe no ar duas novelas cujas trilhas também são repletas de músicas de discoteca: “Te Contei?”, novela das 7h, e “Dancin´Days”, novela das 8h. Os discos venderam mais do que banana na feira.

Eu entrava na minha adolescência. Ouvia Yvonne Elliman, ABBA, Bee Gees, Candi Staton, KC & The Sunshine Band, Boney M, Carol Douglas, Sheila and B. Devotion, Chic, Blondie, Village People, Andrea True Connection e tantos outros no rádio e nos LPs que eu ganhava ou emprestava dos amigos. Eu demoraria para assumir minha homossexualidade e para, efetivamente, ter relacionamentos com outros homens. Muita coisa aconteceu até que eu fosse “realmente eu”. Lembro de ficar perturbado com o “operário” do Village People – David Hodo era o meu preferido do grupo!

Como todo movimento, a Disco atingiu seu auge: fez muita gente dançar, paquerar, se divertir; nas pistas de dança, deve ter havido encontros que viraram relacionamentos sérios e até casamentos – heteros e homossexuais, não duvido. Atravessou fronteiras e chegou à Europa e ao Brasil. Em 1978, a atriz Elisângela gravou o compacto mais vendido por aqui com a faixa “Pertinho de você”, que em tudo lembra “Nice´n´slow” de Jesse Green (1976). Muita gente se aproveitou da onda Disco – gente que, teoricamente, não tinha nada a ver com a coisa: Rod Stewart (com “Da ya think I´m sexy?”), The Rolling Stones (com “Miss you”) ou o Kiss (com “I was made for loving you”) e até Barbra Streisand num dueto com Donna Summer, a rainha da Disco, (“No more tears”).

Obviamente, houve o declínio daquilo tudo.

Talvez a decadência e o fechamento do Studio 54 já fossem um prenúncio do que estava por acontecer com toda a coisa da Disco. A cereja do bolo foi a campanha “Disco Sucks” (“A Disco é uma porcaria”) liderada por um DJ de Chicago, chamado Steve Dahl. Ele foi demitido de uma rádio por se recusar a tocar música Disco. Contratado pela emissora rival, começou a se vingar, ridicularizando a música e o estilo da discoteca. No dia 12 de julho de 1979, cerca de 90 mil pessoas vestindo camisetas com o slogan “Disco Sucks” presenciaram a explosão de LPs num campo de baseball daquela cidade. A coisa ficou conhecida como “A noite de demolição da Disco”.

Os apoiadores da confusão toda eram, segundo os jornais da época, fãs de rock, brancos, jovens e de cabelos compridos. A polícia foi chamada, e os cantores e bandas cujos discos foram queimados e esmagados sentiram-se intimidados e com medo.

Nile Rodgers, do Chic, comparou aquilo à queima de livros pelos nazistas, enquanto Paul Stanley, do Kiss, tachou o ato de fascista. Concordo com os dois! Após isso, a Disco ainda sobreviveu mal e mal na Europa, mas já não tinha o mesmo fôlego.

Muitos anos depois, numa das muitas viagens que fiz com Mônica, uma querida e grande amiga, fomos ver o Studio 54. A boate virou um teatro, mas a fachada foi preservada e a porta original com vidro fosco e o logo da discoteca estão lá. Fizemos questão de entrar pelo menos até o hall. Ficamos imaginando as histórias que aquelas paredes presenciaram naqueles anos de tanta música, badalação, drogas e sexo livre. Existem vários livros que contam a história do lugar – de um lugar repleto de histórias.

Hoje, claro, tenho “Rock the Boat” e “Kung Fu Fighting” na minha coleção. Para mim, não são simples músicas – fazem parte da minha trajetória e da minha saudade.

Curioso que eu tenha tantas lembranças da Disco sem nunca ter entrado numa discoteca da época. Mas adoramos tanta coisa que nunca pudemos conhecer de perto! Assim é o ser humano…

 

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

3 Comments

  1. Admirador da Disco Music que sou, teria muito, mais muito o que escrever! Vivi essa época, músicas e mais músicas que tocaram incessantemente nas rádios, danceterias, enfim, uma era musical. Quantos discos queríamos e não tínhamos recursos para comprá-los, a solução era emprestar de alguém ou esperar a rádio tocar. Lembro-me que saia aqui do interior e ia para capital comprar discos, era uma farra, gastava todo meu salário com isso e depois ouvia da minha mãe, “quando não tiver o que comer, coma esses discos”. Os anos se passaram e com a chegada da internet, conseguimos tudo aquilo que desejávamos e muito mais! Que delícia ler isso, voltei ao ano de 1978 quando comecei a trabalhar na estação de rádio aqui da cidade. Viajei, agora! Professor, obrigado por essa lembrança tão significativa para as nossas vidas!
    E viva a Disco Music.

  2. Ricardo Cano disse:

    Foi certamente uma fase luminosa na minha vida. De certa maneira, acredito que somos uma geração moldada pela jeito “disco” de ser. Mesmo 40 ou 50 anos depois, ainda identificamos marcas desse tempo na nossa essência. A palavra saudade não expressa perfeitamente o que sinto…um vazio existencial explicaria melhor.
    Apesar da minha pouca idade na época, aproveitei muito espaços como o Whiskadão e o Banana Power, tendo até ganhado um prêmio de dança em um matinê, rsrs.😉

  3. Clarice keri disse:

    Perfeito, visualizei sua mãe lavando louças e ouvindo rádio, ao contrário da minha q ouvia novela, kkkkk, muito bom, obrigada.

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