Fui à cidade de Los Angeles, na Califórnia, umas três ou quatro vezes. A cidade é bonita, interessante, abriga Hollywood (a capital americana do cinema), tem seus atrativos e faz o gosto de muitos turistas. Lembro-me de ter passado bons momentos por lá e guardo o lugar com carinho nas minhas recordações. Há poucos dias, perdi um grande amigo que adorava a cidade com todo o seu coração.
Carlos Alberto foi mais uma das minhas paqueras de boate(s) que não deram em namoro, nem em transa, mas que me trouxeram amigos. Eu o conheci em 1997, na extinta Mad Queen, em Moema. Lembro que conversamos bastante naquela noite e ele, muito gentil, me deu uma carona até minha casa, isso às 5h da manhã. Daquela madrugada em diante, nunca mais nos perdemos de vista.
Ele era um amante de música, carros, boates e viagens (para Los Angeles, claro!). Disse-me uma vez que havia se interessado pela cidade quando, ainda muito jovem, nos anos 70, viu o seriado “Chips”. Sua primeira viagem foi em 1986 – depois disso, não parou mais de ir à Califórnia, lugar onde estava a felicidade para ele. Seus olhos brilhavam quando falava de lá e contava suas numerosas idas – às vezes, acompanhado; muitas vezes, sozinho. Para nós, seus amigos, Carlos Alberto era sinônimo de Los Angeles – e Los Angeles era sinônimo de Carlos Alberto.
Era impossível falar na cidade ou visitá-la sem nos lembrarmos dele, sem associá-lo àquelas infindáveis autopistas, bulevares, montanhas e praias tão características da costa oeste americana. E, nas nossas reuniões, ele não economizava em suas histórias passadas por lá – suas aventuras, sua identificação com tudo aquilo e, sobretudo, sua felicidade por visitar aquele estado americano como um todo.
Eu o ouvia com cumplicidade, pois minha cidade do coração era (é) San Francisco, ao norte, e nós “viajávamos” quando conversávamos sobre tudo aquilo. Ele gostava também de San Francisco – na verdade, eu nunca soube de qualquer lugar da costa oeste americana que Carlos Alberto pudesse ter depreciado.
Era fã de Donna Summer, Marvin Gaye, Barry White e Elton John (“Elton dos anos 70”, alertava ele!), Pet Shop Boys e música techno. Quando ouvia alguma música de que gostava, na pista de alguma boate, ele entrava em transe. Era engraçado vê-lo “viajar” daquele jeito.
Arquiteto atencioso, ele reformou meu apartamento e de alguns outros amigos. Minha confiança nele e no seu trabalho era tanta, que dei minhas chaves pra ele e fui viajar. Voltei depois de um mês. E ele com todas as notas fiscais, todas as contas prestadas, tudo em ordem – e meu apartamento renovado.
Certa vez, cansado da arquitetura, ele me confidenciou que não via muita graça no que fazia, não via muito valor. Eu, rapidamente, disse a ele: “Não fale uma coisa assim: você deixa sua marca na casa e na vida das pessoas. E isso não é pouco. Você tem todo o direito de não querer mais ser arquiteto, mas nunca deprecie o que você faz”.
Nossas noitadas eram um capítulo à parte. Carlos Alberto, gentilmente, me pegava aqui em casa e me deixava aqui depois que vínhamos da boate. Fomos a muitas, mas a preferida dele sempre foi o B.A.S.E, ali na Brigadeiro Luiz António, onde era o antigo Hotel Danúbio. Em dois ou três anos durante os quais a boate durou – antes de o dono abrir a Level, na Barra Funda – Carlos talvez tenha “faltado” uma noite ou duas. A gente não perdia aquilo. Quantas histórias, quanta risada, quanta música, quantos olhares trocados quando víamos algum rapaz bonito que interessasse a ele ou a mim. Era isso: ele e eu não precisávamos falar, bastava que nos olhássemos e já sabíamos o que o outro queria dizer.
Ele era formal, sério, sempre vestido com sobriedade e alguma timidez – um virginiano típico! E isso também era motivo de nossas brincadeiras e risadas. Uma vez, disse a ele que eu gostaria de lhe emprestar meus DVDs – na era pré-streaming – de um seriado chamado “Monk”.
– Você vai adorar, Carlos Alberto: tem tudo a ver com você. A série se passa na Califórnia, e o detetive lembra você. O cara é metódico, sério, engraçado e irônico. É a sua cara. Vai por mim!
Bem, não deu outra. Assim que ele me devolveu as três primeiras temporadas, me falou:
– Você tem as outras? O Monk sou eu mesmo! Eu me vi na TV! – mais risada. Nunca mais me seria possível ver a série sem me lembrar dele! Nunca mais!
Minha mãe se divertia quando ele dizia que detestava o ABBA… como assim, um gay detestar o ABBA? Pois ele não gostava, mas não gostava de um jeito irônico, que nos fazia rir com aquela cara de cínico que só ele sabia fazer. Uma vez, um amigo me emprestou um CD com a Perla – cantora paraguaia de muito sucesso nos anos 70 – cantando ABBA. Estávamos num jantar e eu disse: “Gente, a Perla cantando ABBA é um horror!”. E ele: “O ABBA cantando o ABBA é um horror!”. Risada geral.
Lembro de quando ele comprou um gravador de CD – novidade das novidades, muito antes de termos computador que fizesse isso. Naquele momento, poderíamos gravar um disco somente com as músicas de que gostássemos, com as nossas músicas! Nada de ouvir uma ou duas faixas somente – agora, nós fazíamos a seleção. Ele me gravou vários com as músicas que dançávamos nas boates, e eu tenho todos eles aqui. Cerca de uns 20! Pouco tempo depois, ele foi generoso o bastante para encomendar outro aparelho com o amigo que trabalhava na Philips, e eu pude comprar por um preço bem camarada. (O aparelho ainda está aqui, sem uso, mas para sempre associado aos dias em que Carlos estava entre nós, seus amigos.)
Passamos alguns momentos difíceis juntos – a morte de seu pai, a morte de minha mãe, algumas desilusões amorosas minhas e dele, dificuldades financeiras, aborrecimentos com pessoas… as coisas naturais da vida. Carlos não era de falar muito, a não ser que confiasse muito na outra pessoa. Lembro-me de muitas madrugadas em boates, quando saíamos da pista de dança, íamos ao bar e, lá, ele me confidenciava algumas coisas que o incomodavam. Quando eu o conheci, sua mãe já havia falecido, e posso calcular o impacto dessa perda para o meu amigo.
Eu gostava de fazê-lo recordar músicas antigas, pois era sempre uma oportunidade de ele contar que tinha comprado o LP: onde, quando, o que ele fazia na época, em que loja havia comprado, se quem o havia atendido tinha sido um rapaz bonito etc. E, se o disco ou o CD havia sido comprado em Los Angeles, ah!, aí a história vinha com detalhes. E eu me divertia.
Lembro do single dos Pet Shop Boys com “New York City Boy” que eu comprei pra ele na Virgin de Nova York; lembro de como ele curtiu quando conheci um americano e fui para a casa dele… em Los Angeles; lembro de compartilharmos, um com o outro, vídeos da Califórnia que as pessoas postavam no Youtube.
Rio quando me lembro do código que inventamos para falar dos rapazes sem que eles percebessem. A cantora Deborah Cox gravou uma música que estourou nas boates chamada “Absolutely not” (“Absolutamente, não”), e Amber, uma outra cantora, estourou com “Yes”. Quando víamos alguém, perguntávamos: “Amber ou Deborah?”. Se o rapaz fosse bonito, dizíamos simplesmente “Amber”; se ele não agradasse, dizíamos “Deborah”. Ninguém escapava!
São tantas coisas! O jeito de ele atender o telefone – “Oi, Vítor!”, suas tiradas irônicas sobre os atrasos deste país, sua vontade de ir embora para os Estados Unidos, sua desilusão com a bagunça e a falta de planejamento urbano de São Paulo. Seu jeito crítico quando a música da boate não estava boa: “Tá um liiiixo!”. Ele sabia que nos faria rir.
Numa de nossas últimas conversas, eu disse a Carlos Alberto que estava ouvindo um dos CDs que ele havia me gravado com músicas do B.A.S.E. Mandei a ele uma foto da lista das músicas. Depois de um tempo, ele me respondeu: “É um tempo que não volta mais. É o fim de uma era…”. Meu amigo estava sendo profético. Nossas noites de músicas, paqueras e risadas ficaram no passado e na minha lembrança. Tudo parece tão antigo!
Escrevo no 18 de outubro, nove dias após a sua morte. Meu amigo sofria de insuficiência cardíaca e de pressão alta. No dia em que seu coração se cansou deste mundo, eu havia combinado de ligar pra ele depois das 22h. Liguei, mas, quando ninguém atendeu, julguei que estivesse ouvindo suas músicas com o fone de ouvido. Ele já havia partido. Tinha acabado de completar 63 anos, no 20 de setembro.
Nunca fomos a Los Angeles juntos – acho que não era pra ter acontecido. Uma certeza, contudo, eu tenho: Carlos Alberto deve estar passeando pelas “highways”, praias e bulevares agora. Na Cidade dos Anjos, ele deve estar feliz. Como diz o velho ditado americano, “seu lar é onde está o seu coração”. E o dele sempre esteve lá.
Por aqui, nesta cidade caótica e sem planejamento, como ele dizia, ficarão a saudade e a recordação de uma pessoa que nos fará muita falta. Estamos todos bastante tristes.
Que sua alma esteja em paz, meu amigo!
5 Comments
Linda homenagem.
Linda Homenagem a este Amigo nesta Crônica.
Pude ver em minha mente todas estas passagens desta Amizade e melhor ainda, deliciar-me com os pontos da Vida entrecruzadas de Carlos e Vítor desde as viagens a LA, idas às boates ,caronas ,músicas e etc.
Viajei ao ler esta Crônica sem ter saído de São Paulo.
Bela Crônica .
👏👏❤❤
Tive o privilégio em conhecer Carlos Alberto, a última vez que o vi foi quando ele veio passar um final de semana em Espírito Santo do Pinhal (cidade onde resido), seu irmão morava aqui. Tive a oportunidade em trocar algumas “figurinhas” com ele a respeito do Pet Shop Boys! Que sua alma esteja em paz. Linda crônica.
Emocionante homenagem a Carlos Alberto.
Certamente, ele faz parte de um quadro muito especial na parede da memória de cada um de nós que o conhecemos.
Belíssima crônica!
Linda e justa homenagem…