Chego ao restaurante com vinte minutos de antecedência. Não é de bom tom deixar uma dama esperando, embora ela não seja uma dama. Tem muito dinheiro, só isso. Não é uma dama – nunca soube se comportar como tal. Duvido que o faça agora…
Seu telefonema ontem me surpreendeu. O que ela poderia querer comigo depois de tanto tempo? O que ainda teríamos para conversar depois de seis meses de caso encerrado? O assunto dela não era comigo, nunca fora, por isso estranhei quando ela me pediu para que nos encontrássemos para um jantar.
O restaurante que ela escolheu é bastante elegante, claro! Garçons extremamente atenciosos, toalhas de mesa requintadas, louças e talheres prontos para atender aos clientes mais exigentes. Escolho uma mesa perto da janela. A noite está fria, a chuva já começou, e vejo a água que escorre pelas vidraças enquanto tomo meu suco, nunca bebida alcoólica. Estou calmo, apenas um pouco entediado por não estar na minha sala curtindo o frio, comendo pizza e vendo um bom filme. Espero que ela não se atrase.
Sou tomado por uma série de lembranças, a maioria delas não muito boas – desagradáveis, para ser mais exato. E, em todas elas, essa mulher está presente, sempre tentando destruir a felicidade alheia. Eu devia ter vindo com um colar de alho no pescoço.
Pela janela, entre os pingos de chuva, vejo-a sair do carro. O motorista vem lhe abrir a porta com um guarda-chuva na mão. Ela não perde a pose. Pode perder tudo, menos a pompa, que é uma de suas mais marcantes características. Não sabe ainda – ou não quer saber – que essa foi uma das razões de sua infelicidade no casamento. Uma das razões, pois a coisa é muito mais complexa. Ela comete o erro de achar que pode governar tudo, incluindo a vida das outras pessoas. Isso também é uma demonstração de insegurança!
Ela chega e imediatamente é atendida. É conhecida no restaurante, vem comer aqui com frequência, é evidente. Assim que me vê, esboça um sorriso e caminha em minha direção. Quando ela se aproxima, eu me levanto, o mínimo de educação não faz mal a ninguém. Ela é um misto de timidez com arrogância, isto é, finge timidez e candura, ao se sentar em frente a mim.
Cabelos bem tingidos e bem penteados, batom combinando com o vestido, uma maquiagem leve, serena, sem pesar demais no rosto. Brincos delicados, nem muito grandes, nem muito miúdos. Ela tem bom gosto.
Depois das amenidades sobre o tempo, a noite, a chuva, o trânsito etc., ela chama o garçom e pede um vinho. Sabe que eu não a acompanharei, mas pede assim mesmo. É ela quem começa:
– Você deve ter ficado bem surpreso com meu telefonema, não?
Eu não nego. Fiquei, sim. Digo isso e fico esperando que ela explique a razão de ter me chamado para este jantar. Coisa sem pé nem cabeça depois de tudo. Ela, tranquilamente – ou aparentando uma tranquilidade que não sente -, passa a manteiga na torrada e me encara. As mãos continuam bonitas. Unhas muito bem feitas, dedos delicados, jeitosos e hábeis. Ajeita a gola do vestido vermelho, dá uma olhada no celular antes de colocá-lo definitivamente na bolsa – gesto que eu aprecio – e fala:
– Há algum tempo que eu gostaria de conversar com você sem o Paulo Ricardo (faz questão de usar o nome composto!) presente. Vivi com ele, como você sabe, durante 20 anos, tivemos nossos dois filhos, tínhamos uma família linda, elogiada por todos e invejada também. (Passo manteiga na minha torrada e deixo a cidadã continuar. Quero ver até onde vai essa ladainha…).
Quando ela vê que não a interrompo, prossegue:
– Bem, você sabe de tudo isso. Quando você surgiu do nada, esse era o quadro, era assim que nossas vidas estavam.
Minha vontade é de explodir. Minha vontade é dizer que eu não “surgi do nada”. O marido dela estava infeliz no casamento fazia anos, frequentava saunas e bares gays havia muito tempo. Levava uma vida dupla desde os seis ou sete anos de casamento. Ela, contudo, não consegue crer nisso. Para ela, é muito mais confortável acreditar que eu levei seu marido para a perdição, e coisas assim. Chatice! Ela chegar a ser patética. Olho bem pra cara dela, mastigo com calma minha torrada, bebo um pouco do meu suco com mais calma ainda e deixo que a mulher prossiga.
– Faz dois anos que Paulo Ricardo abandonou a família para viver uma aventura. Eu tenho certeza de que é isso – só uma aventura. Só agora tive vontade de olhar na sua cara para lhe dizer isso. O que tive com Paulo Ricardo você jamais terá. Tenho um pouco de pena de você.
Ah, a cobra saiu da toca e deu o bote! Finalmente! Eu estava achando que ela estava muito civilizada e comportada com a língua que sempre teve. Uma língua pronta pra humilhar, rebaixar, ofender e afastar as pessoas. Quantos já foram estraçalhados pela sua fala mansa, porém cruel! Quanta frieza já saiu desses lábios que conhecem os melhores batons do mundo! Dou risada por dentro e deixo que ela continue.
– Até hoje não sei exatamente o que o atraiu para ficar com um homem que deve ser uns 15 anos mais velho que você… não sei se foi o dinheiro ou se foi o dinheiro…
Dá uma risada menos irônica do que amarga. Sua dor está estampada no rosto. Só agora, vejo como ela envelheceu nesses seis meses depois da última audiência. Suas mãos tremem quando ela pega a taça de vinho. Só agora entendo o motivo deste encontro – orgulho, arrogância, inconformismo… e fragilidade. Ela é uma mulher frágil, tenta passar firmeza e força, uma certa independência até, mas é frágil. Jamais conseguiu ir em frente depois que o marido a deixou e a família perfeita desmoronou.
Talvez não tenha deixado ninguém se aproximar por medo de encontrar alguém que se interessasse somente por seu dinheiro. É o juízo que ela faz de mim. Sei, por intermédio dele, que os filhos foram estudar fora. Talvez não tenham aguentado o veneno é os queixumes dessa mulher.
– Convidei você para este jantar porque eu queria te olhar com calma. Realmente, eu estava certa: sem classe, sem beleza, provavelmente sem instrução… um pé rapado! Quando Paulo Ricardo acordar, vai despachar você sem dó nem piedade. Assim como me deixou, vai deixar você também logo que se enjoar. E não demora muito, hein! Prepare-se!
Ela sabe que ele está viajando. A secretária dele é cúmplice, informa os passos do chefe de maneira doentia. Duas doentes, penso eu. Termino meu suco, não sinto a mínima fome, nem vontade de continuar ouvindo a cidadã. Minha cara de pena é visível. A cara dela de raiva também. Resolvo falar:
-Bom, vim aqui sem entender por quê… e saio daqui do mesmo jeito. Acho você uma chata, e, pelo jeito, ele também achava. Passaram-se seis meses. Você não mudou nada, e isso não é um elogio. Não é me ofendendo que você terá de volta o que passou. Passou! Ele não ama você e acho que nunca amou. Eu até poderia falar uma porção de coisas que sei a seu respeito, mas não! Deixei um dos meus gatos sozinho em casa – o outro está viajando. Noite de chuva, boa para um bom filme. Estou arrependido de ter vindo, claro, como eu achei que me arrependeria. Fui ingênuo por achar que poderíamos ter uma conversa civilizada. Lógico que não! Siga com sua vida – é o melhor que você tem a fazer. Fica a dica!
Levanto, pego meu casaco e deixo a mulher sozinha à mesa. Esqueço as boas maneiras. Tudo tem um limite. Lá fora, a chuva me espera.
Não olho pra trás e saio do restaurante, muito arrependido de ter vindo. Fico satisfeito com a ideia de ir pra casa nessa noite fria… vou tomar um banho quente e ver um filme.
Paulo não é criança, sabe o que quer a esta altura da vida, e estamos felizes juntos… mas as palavras dela ficam na minha cabeça e me tiram a tranquilidade. Admito que ela conseguiu. Sim! Uma certa insegurança vai tomando conta de mim à medida que vou caminhando sob a garoa, evitando as poças d´água, em direção ao estacionamento.
E se ela estiver certa?
1 Comments
Ótima história, sempre bom ler sobre trios amorosos e finais felizes.