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MADRUGADA, PÓS BOATE

Saio da boate na madrugada fria e chuvosa. Choveu a noite inteira, uma chuva forte, que nós não escutamos lá dentro – música alta, o mundo aqui fora deixa de existir.

 

MADRUGADA, PÓS BOATE

 

Agora, é a garoa que mantém a rua molhada e os poucos carros com os limpadores de para-brisa ligados. Um ou outro café ainda está aberto, vejo pessoas solitárias sentadas ao balcão. Daqui a poucas horas, será a vez das padarias e bares, lojas de roupas e de sapatos, escolas, casas lotéricas, supermercados… daqui a pouco, a cidade voltará a funcionar, mas não deixarei que tudo isso me pegue sozinho no dia que vai nascer.

Hoje, saí sem meus amigos costumeiros que me acompanham sempre à padaria 24 horas. Caminho sob a garoa pensando em tanta coisa! Vejo a grande banca de jornal, sempre com suas luzes acesas, na esquina da Ipiranga com a São Luiz. Compro jornais e revistas lá há mais de três décadas – e me dou conta de que minha relação com esta cidade vem de há muito, muito tempo, desde que eu morava no subúrbio e sonhava em morar aqui no centro.

A primeira boate em que entrei na minha vida não existe mais, porém há uma outra no mesmo local, e eu guardo essas lembranças com muito cuidado, como se aquelas paredes trouxessem muito do que vi e vivi quando eu era tão ingênuo. Toda vez em que estou lá, eu me pego pensando em alguns homens que se foram, homens que, de alguma forma, fizeram parte da minha vida.

Homens que eu talvez tenha amado – ou tive a impressão de amar? – e que foram importantes para me ensinarem algumas coisas doloridas e dolorosas que carrego até hoje. Sou um sobrevivente, mas ainda é estranho saber que não mais os verei. Hoje são retratos na parede, fotografias envelhecidas, músicas que me trazem seus rostos, uma época em que uma certa doença dizimou a tantos de uma maneira ou de outra.

Pego-me pensando nesses mortos e parece que faz tanto tempo, meu Deus! Ando por essas ruas, em meio a estes prédios, passo por avenidas e alamedas me lembrando de conversas e situações nem sempre de todo agradáveis. Há dor, ainda há dor! Quando vou me livrar dela?

Há uma lembrança em cada esquina; há coisas a serem lembradas nos cinemas que ainda resistem em tempos de aplicativos de caça; as poucas (pouquíssimas) livrarias têm sua história para mim… como esquecer a Siciliano com suas revistas e livros importados?  O dinheiro contado no fim do mês, mas sempre um pouco reservado para gastar com leitura.

Fecho meu casaco até o pescoço. Não resisto e vou até a banca de jornal ver se há alguma coisa que me interesse… o rapaz que me conhece há tantos anos está com uma cara sonolenta, cansado, talvez detestando estar a esta hora, tempo chuvoso e frio, fora da cama. Cumprimento-o e passo uns 15 minutos olhando as revistas.

Vontade de continuar caminhando sob a garoa; quem sabe um rapaz bonito que venha na direção oposta me convide para um café e nossa conversa seja agradável, inteligente e interessante! Quem sabe ele também tenha histórias para contar das ruas dessa cidade tão maltratada! Carole King canta “Oh, city streets! The stories that they tell. Oh, city streets! They can be heaven, they can be hell”. (“Oh, ruas da cidade! As histórias que elas contam. Oh, ruas da cidade! Elas podem ser o céu, elas podem ser o inferno”.)

Quem sabe esse rapaz seja tão bonito a ponto de me olhar e gostar de mim como eu realmente sou! Quem sabe eu goste dele pelo que ele é!

E nós nos sentaríamos num café e tomaríamos um chocolate quente. Ele simplesmente gostaria de pãezinhos na chapa – algo tão paulistano! – e nós comeríamos e conversaríamos sobre minhas coisas e sobre as coisas dele. E, ao contrário do que se faz hoje, um prestaria genuína atenção ao que o outro teria para dizer. Sem atropelo, sem egoísmo, sem achar que sua história é melhor do que a do outro. E eu não recusaria um beijo se ele quisesse…

Hoje, a boate estava muito boa. Os DJs amigos tocaram as minhas favoritas e mal saí da pista de dança. Posso dizer que me diverti muito. Volto pra casa satisfeito, feliz, talvez um pouco melancólico, mas isso já faz parte de mim.

Saio da banca de jornais com algumas revistas sobre San Francisco e Nova York debaixo do braço. Revistas de turismo.  Adoro essas cidades.

A essa hora, a padaria perto do meu apartamento já abriu. Passarei por lá e comprarei pãezinhos quentinhos. Voltarei pra casa e farei um delicioso chocolate quente.

Enquanto como, penso no moço bonito que não encontrei… e tenho certeza de que nos veremos no próximo fim de semana, em alguma rua úmida, na madrugada chuvosa desta enorme cidade chamada São Paulo.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

5 Comments

  1. Muitas vezes eu saia pensando que encontraria alguém! Encontrava, quando encontrava. Hoje como moro no interior, vejo gente bonita, interessante, apenas.

  2. Muitas vezes eu saia pensando que encontraria alguém! Encontrava, quando encontrava. Hoje como moro no interior, vejo gente bonita, interessante, apenas…

  3. Bernadete disse:

    Linda crônica! Adorei! Saudosa, melancólica e feliz!

  4. Baltasar Pereira disse:

    Bela Crônica onde a Cidade, seus locais e seus personagens aparecem de maneira marcante,não deixando de torcer pelo personagem principal da Crônica de que o mesmo encontre o rapaz bonito no fim de noite e início de Dia. Me senti caminhando embaixo da garoa desta Cidade que adoro e chama-se São Paulo. 🤗🤗🤗 Crônica deliciosa.

  5. Clarice keri disse:

    Bonita crônica, gosto dos detalhes, garoa, úmida, dá pra sentir suas sensações, adorei.

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