SEGREDO DE VIDA INTEIRA
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MAS ERA UM PEDERASTA

Naquele ano de 1971, o prédio da rua Santo António ganhou de presente para suas dependências a mudança do coronel Severiano, aposentado, 66 anos, com a esposa, uma senhora simpática de 63. Os dois filhos moravam fora do país, e o casal recebia, nos fins de semana, alguns amigos para o carteado, reuniões regadas à pizza, cerveja para os homens e refrigerantes para as mulheres.

O coronel Severiano aposentara-se contra sua vontade, uma vez que, como costumava dizer, o país precisava de seus serviços, principalmente naqueles dias de luta contra comunistas sem vergonha. Aposentara-se, mas mantinha o espírito de vida inteira, militar rígido, conservador, linha dura e mantenedor da ordem e da lei. Recebia, além dos amigos da reserva, muitos militares da ativa que procuravam o velho para conselhos e confidências sobre o combate à luta armada. Em suma, ainda conservava seu prestígio e seu nome construído depois de tantos anos “servindo à pátria”.

Não foi surpresa para os antigos moradores que o velho militar não simpatizasse com Roberto, o Beto, do andar de cima. Na verdade, o coronel não apenas não simpatizava, como nutria verdadeira aversão ao rapaz de 22 anos, estudante de Geografia da Universidade de São Paulo. A família do universitário era do interior e ele vivia no apartamento do pai, sozinho, na cidade.

Os motivos para a aversão do velho eram vários. A música alta durante o dia inteiro, por exemplo, depois que o moço chegava da faculdade (estudava no período da manhã, passava a tarde toda estudando, já que a família o sustentava enquanto fazia o curso superior), as vozes de Gal Costa, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Taiguara e Chico Buarque, entre outros, invadiam o apartamento do velho, que gostava de dormir depois do almoço e acordar para ver Rin Tin Tin e Daniel Boone. O velho se queixava com a esposa, que pedia para que ele entendesse o jovem, que deixasse de lado e que fechasse a janela. Ele se queixava à síndica, e seu prestígio de militar, naqueles dias, conferia-lhe autoridade e fazia com que a responsável pelo condomínio desse um puxão de orelhas no jovem.

Beto, contudo, era um rapaz muito querido por todos os moradores. Todos conheciam seus pais e tinham visto o moço nascer e dar os primeiros passos ainda bebê. Viram o apartamento ser alugado quando a família se mudou para o interior, quando Beto ainda tinha sete anos de idade. Todos eram moradores antigos e todos eram muito amigos.

Muitos deles não se sentiram confortáveis com a mudança do coronel para o prédio. Eram dias pesados, tensos, a censura em todos os lugares e até o que se falava nas reuniões do condomínio poderia ser perigoso em termos de subversão e prisão. Severiano era a personificação de tudo aquilo – ainda que aposentado.

O trânsito de militares que o visitavam trouxe uma atmosfera estranha ao condomínio. A maioria se sentia vigiada, tensa, embora houvesse uns poucos que gostassem da presença do velho e da “ordem” que se impunha. Havia, claro, aqueles que eram favoráveis ao que acontecia no país, ainda que a maioria preferisse não se envolver com o cenário político.

As implicâncias do velho só aumentavam. Um dia, era a música alta; noutro, o fato de o rapaz estudar na USP, “um antro de subversivos”; na semana seguinte, porque o rapaz recebia os amigos “cabeludos, barbudos, vestidos de modo estranho, com roupas coloridas, sandálias de couro cru e bolsas do mesmo material”. Eram moças e rapazes que, às vezes, ficavam até tarde bebendo cerveja, ouvindo música e estudando para provas. O velho ia dormir de mau humor.

Houve um dia em que ele entrou no elevador e pensou ter visto Beto próximo demais de um outro rapaz, parecia que suas mãos estavam se tocando. Eram 7h da manhã – o velho saía para caminhar; os rapazes, para a faculdade. De qualquer forma, ele não gostou do que parecia ter visto. Naquela manhã, caminhou irritado, com aquela cena na cabeça. Comentou com a esposa, a qual lhe disse que talvez fosse somente impressão do marido.

Os dias foram se sucedendo e o velho militar não escondia sua antipatia pelo jovem do apartamento de cima. Eram encontros no elevador sem que o “bom dia” do jovem fosse correspondido; eram encontros na calçada sem que a gentileza do moço ao abrir a porta do prédio para o velho fosse recompensada com um simples “obrigado”. O militar sempre de cara fechada.

Em um certa noite de sábado, o velho perdeu o sono e ficou na sala tomando café, luzes apagadas, apenas o rádio tocando um bolero bem baixinho. Eram mais ou menos 3h da manhã de uma noite fria do fim de agosto. Beto voltava para casa para descansar e para curtir o novo namorado que conhecera na boate recém inaugurada na rua Augusta, a Medieval. Estavam juntos desde a noite de inauguração e, naquele fim de semana, ficariam no apartamento do estudante de Geografia.

O problema começou porque a quantidade de bebida que haviam ingerido passara da conta. A paixão é um sentimento sempre muito exagerado que leva a exageros. Estavam ambos muito bêbados ao saírem do táxi que os levara para a casa. Entraram no prédio falando alto demais, desde a calçada. Beto, extremamente alegre, puxou o outro pelo colarinho e deu-lhe um beijo ali mesmo, aproveitando o silêncio da noite e a ausência de olhos que pudessem condenar tal comportamento. Pela janela da frente, na escuridão, os olhos do coronel tudo viram e se encheram de ódio. Abutres estão sempre à espreita…

Foram dias deliciosos para o jovem estudante. Seu namorado ficou hospedado em seu apartamento durante todo o fim de semana – ouviram música, cozinharam, transaram (muito!), assistiram a filmes na TV em preto e branco, convidaram amigos e mal tiveram tempo de sair para a rua – com exceção do domingo, quando resolveram almoçar no Gigetto, na rua Avanhandava. Ficaram juntos até a manhã de segunda. Na saída, deram de cara com Severiano.

Se o velho já não gostava do rapaz, agora, então, detestava o simples fato de ele morar no mesmo prédio. Como de costume, não cumprimentou o casal, esperou que eles saíssem e foi ter com o porteiro, Juvenal. Esse tinha um filho no exército, achava que a instituição era um pilar da moralidade e da seriedade e, claro, mostrava-se subserviente ao militar aposentado, sempre pronto a bajular o velho coronel.

Severiano esperou que os rapazes saíssem e fez algumas perguntas sobre Beto a Juvenal. Ficou sabendo, por exemplo, que a homossexualidade do rapaz era do conhecimento de todos, todo o mundo sabia que ele era “veado”, mas, como eram amigos dos pais, os verdadeiros proprietários do apartamento, “não comentavam, nem protestavam contra o gosto do moço”. Ele mesmo, Juvenal, conhecia os pais de Beto, “gente boa, muito distinta”.

– Que tipo de gente distinta cria um filho assim? – quis saber o militar.

Quando voltou para casa, relatou à mulher tudo o que havia visto na madrugada de sábado e tudo o que apurara da conversa com o porteiro. A esposa, uma senhora muito doce e tranquila, não quis prolongar a conversa, mesmo porque conhecia o marido e sabia das coisas de que ele era capaz quando contrariado. No seu íntimo, tinha consciência de que os filhos haviam se afastado de sua casa por causa do temperamento irascível do velho. E, principalmente, haviam saído do país por causa do endurecimento do regime depois da promulgação do AI-5, três anos antes.

– Um absurdo tudo isso. Coisa de país atrasado, mãe!

Os dias foram se sucedendo. O ódio foi crescendo dentro do peito do velho homem, corroído pela raiva e pela intolerância. O único período do dia em que se sentia bem era a parte da manhã, pois Beto estava fora, na faculdade, e não “trazia seu comportamento vergonhoso” para “um prédio familiar”.

Tudo o que não é resolvido explode…mais cedo ou mais tarde. Um estado de tensão não se sustenta por muito tempo. E a artilharia do velho militar sentiu-se na obrigação do bombardeio, pois silenciar diante do inimigo tão próximo era covardia. Se o ataque era certo, sua execução ainda precisava de planejamento. E foi a isso que Severiano dedicou suas horas e dias.

Às vezes, no meio da leitura do jornal, parava e ficava olhando para o nada – e aquela cena de Beto beijando o namorado na calçada vinha-lhe à cabeça e o enfurecia. No meio da noite, precisava se levantar, pois era tomado de verdadeira insônia provocada pela indignação que trazia consigo. Já não ficava em casa nas tardes depois do almoço. Enquanto a mulher dava andamento ao seu tricô, ele saía, caminhava até a Praça da Sé e voltava; depois, se fosse muito cedo, ainda caminhava pela rua Nestor Pestana, depois rua da Consolação e rua Maria Antónia e voltava no começo da noite para tomar seu banho e jantar antes do Jornal Nacional.

Foi numa noite de domingo, por volta das 19h, que resolveu tomar providências quanto ao que o incomodava. Beto estava reunido com cinco amigos e o namorado. Eram três moças e dois rapazes. Na vitrola, os sete jovens ouviam “Que pena” com Gal Costa e Caetano Veloso. Sentados no tapete da sala, tomavam cerveja e conversavam seriamente sobre a situação do país, sobre os amigos “desaparecidos” e sobre a utopia de uma reforma pela luta armada. Eram até mal vistos na universidade, uma vez que não compactuavam com os delírios absurdos de tantos estudantes que tinham outros projetos para o país.

Por volta das 20h30, ouviram-se batidas na porta. Beto se soltou do abraço do namorado e se levantou do chão. Foi à porta e, ao abri-la, viu-se diante de cinco policiais fardados e de armas em punho. Abusando de sua autoridade, invadiram seu apartamento e, com um soco, arrebentaram o toca-discos, estabelecendo um silêncio ao mesmo tempo opressor e assustador no lugar. Foi o mais graduado deles que ordenou uma revista em todos os cômodos.

– Fomos avisados de que os senhores se reúnem com frequência para o consumo de drogas e para a manifestação de ideias subversivas contra a Revolução de 1964. Levem todos para fora, agora, soldados. Imediatamente! Vamos levar esses subversivos para passear na noite de domingo!

Beto ainda tentou protestar, mas foi contido por um tapa na cara que lhe fez cair no sofá. Os demais jovens quiseram protestar, mas foram silenciados por socos e pontapés desferidos pelos homens fardados. Nem mesmo as moças foram poupadas – além de piadas feitas sobre suas partes íntimas, foram arrastadas para fora, sem ao menos poderem calçar suas sandálias de couro.

Àquela hora, nenhum dos moradores se atreveu a abrir a porta para ver o que acontecia, embora o barulho fosse ouvido pelo prédio inteiro. A viatura estacionada em frente ao prédio era o bastante para que ninguém se aventurasse a sair no corredor. As moças choravam e os rapazes, apesar das pancadas, protestavam que aquilo era um absurdo – principalmente porque nada fazia sentido.

Juvenal, na portaria, apenas acompanhava a cena. Sentia pena daqueles jovens, mas não se atreveria a falar coisa alguma. Beto olhou em sua direção pedindo um socorro mudo, mas o porteiro limitou-se a abrir a porta para que todos chegassem à rua iluminada por um simples poste com luz de mercúrio. Caía uma garoa fina, mas gelada. Tudo era silêncio – um silêncio mais de morte do que de paz.

Antes de entrar no carro que os levaria à prisão em um quartel qualquer da imensa cidade, Beto ainda olhou para trás e viu que alguém no apartamento de Severiano observava na penumbra. E o rapaz então começou a entender o que se passava naquela absurda e surreal noite de domingo. Temeu pelo destino dos amigos, inocentes, e temeu pelo próprio destino também.

Em sua poltrona, sem levantar os olhos do tricô, a mulher percebeu o marido ligar a TV enquanto a voz do apresentador Flávio Cavalcante tomava o recinto que recebia apenas a claridade de uma luminária. Ela parou o trabalho e, entendendo tudo o que acabara de se passar, disse ao marido:

– Severiano, você precisava ter feito isso? Ele não era subversivo e nem consumia drogas…

O velho coronel sentou-se em frente à TV, esticou as pernas e, sem olhar para o rosto da mulher, disse, apertando os olhos com ódio:

– Mas era um pederasta!

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

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