MEMÓRIAS DE UM CURSINHO – II
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MEMÓRIAS DE UM CURSINHO – III

Earth Rotating Around Its Own Axis.

Eu costumava brincar com os alunos, dizendo que a única diferença entre as estrelas do Rock e nós, professores, era que eles eram milionários, e nós não. De resto, éramos tão conhecidos quanto eles! Exageros e brincadeiras à parte, encontrávamos alunos em todos os lugares do mundo, nas situações mais inusitadas, nos momentos mais inesperados.

Perdi a conta de quantas vezes ouvi “Oi, professor!” em estabelecimentos comerciais como supermercados, farmácias, relojoarias, padarias, confeitarias, lojas de calçados, lojas de roupas, restaurantes e cafeterias, além de consultórios médicos, hospitais, ônibus, metrôs etc. Eram moços e moças que me encontravam e vinham falar comigo. Estavam passeando ou eu é que entrava no estabelecimento em que eles trabalhavam. Cheguei a um ponto no qual, se um adolescente estivesse me olhando com muita insistência, eu já cumprimentava. Podia ser aluno…

Enquanto escrevo, vou lembrando de alguns encontros inusitados. Lembro de uma vez em que fui a Campos do Jordão com um primo que não conhecia a cidade. Fomos passar o dia, apenas, e ele quis se divertir no tal teleférico. Quando íamos montanha acima, escuto da linha oposta, que estava descendo: “Fala, Vitão! Tudo bem? Passeando?”. Era um aluno com sua namorada, que me reconhecera lá no alto. E todo o mundo olhando pra minha cara!

Eu estava em minha primeira viagem a Amsterdã, dezembro de 2006. Um amigo que morava lá me mostrava a (linda) cidade, quando entramos numa loja de enfeites de Natal. Eu queria trazer alguma coisa para minha mãe e decidimos entrar. Estávamos conversando e, de repente, uma moça muito bonita veio falar com a gente. “Vocês são brasileiros? Eu também. Que legal! Moro em Roma, casei com um advogado italiano e moro lá faz três anos”. Eu e meu amigo rimos: “Que chato! Deve ser muito triste morar na Itália, né?” Rimos todos. Então, ela olhou pra mim e perguntou: “Espere aí: você não é professor de cursinho? Professor de Redação?”. Bingo! A moça tinha sido minha aluna fazia uns oito ou dez anos e lembrara-se das aulas e da escola. (Ainda bem que eu e meu amigo não estávamos falando bobagem em português perto dela…)

Pula para 2007. San Francisco, na Califórnia. Adoro aquela cidade. Dessa vez, eu viajava sozinho; férias de janeiro, fui curtir o friozinho daquela cidade linda na costa oeste americana. Como sempre, andei muito a pé e, claro, nos famosos bondinhos (“cable cars”), que são uma atração turística, apesar de muito utilizados pelos próprios moradores. Eu os tomava todos os dias, pra cima e pra baixo. Numa bela tarde de sábado, vi um grupo de jovens meio perdido, sem saber que direção tomar. E percebi que falavam português. Aproximei-me e perguntei se precisavam de ajuda etc. Eles estavam num hotel em Los Angeles, mas haviam tirado o fim de semana para conhecer San Francisco. Eu conversava com eles quando um dos rapazes veio com a pergunta: “O senhor não é professor lá em São Paulo? Fui seu aluno há dois anos”. Levei a moçada a uma pizzaria e nos divertimos muito. Era um grupo de uns seis jovens.

Uma outra vez aconteceu em Buenos Aires. Eu estava com minha mãe, era julho de 2015. Estávamos num shopping na tal rua Florida, e um moço com sua família veio falar comigo – o rapaz era meu aluno naquele ano, e seus pais eram pessoas encantadoras. Lembro que o almoço foi agradável e depois saímos para comprar os tradicionais alfajores.

O que falar de boates? Perdi as contas das vezes em que encontrei alunos nas boates gays de São Paulo. Alguns vieram com propostas que não fariam em sala de aula, outros mostraram um certo constrangimento, sobretudo no começo dos anos 90, em que, como já disse, a homofobia não era crime – “crime” era ser gay. Eu agia normalmente – por que esconder que eu estava na boate se já tinham me visto? O encontro viraria conversa entre os alunos na segunda-feira? Paciência! Viver com medo é viver pela metade. O que que eu fazia fora da escola era da minha alçada.

Houve um dia em que me senti mal em sala de aula. Tive de sair e ser substituído por outro professor. Saí da escola e fui diretamente ao Hospital Nove de Julho, ali na Peixoto Gomide. Quando entrei no consultório, a pergunta: “Professor Vítor, qual o problema com o senhor?”. O médico havia sido meu aluno fazia cerca de uns dez anos. De alguma forma, senti-me reconfortado com a recepção carinhosa dele – e lisonjeado por ter se lembrado de mim. Bem, fui tomar soro. Fiquei a tarde toda com aquela coisa pingando na minha veia. Na cadeira ao lado da minha, uma moça me olhou e disse: “Fui sua aluna no ano retrasado. Estou fazendo (e disse o nome do curso, que eu não lembro agora). Acho que comi alguma coisa estragada”. E ficamos conversando a tarde toda, enquanto nossos frascos de soro não acabavam. Numa única tarde, dois ex-alunos… e num hospital!

Tenho certeza de que meus colegas todos têm histórias assim pra contar também. Sei de um que encontrou um aluno… no Alasca! Um outro, em Tóquio. E um outro ainda, em Pequim. Que coisa! Depois disso, ninguém poderá dizer que não temos alunos e ex-alunos espalhados no mundo inteiro.

E os encontros inusitados e surpreendentes também fazem parte das lembranças: a filha de uma professora minha da faculdade acabou sendo minha aluna; dei aula para duas funcionárias de um banco e a gerente delas era minha amiga de infância na Freguesia do Ó; uma vez, eu estava na casa da minha mãe, e chegou uma vizinha com o filho – ele era meu aluno e não fazia ideia de que minha mãe morava tão perto da casa dele. E por aí afora.

Houve uma vez que tomei um susto. Fui comer um peixe na casa de um amigo e seu namorado. Lá, havia outras pessoas e a tarde de domingo foi bastante agradável. Na noite do dia seguinte, uma segunda-feira, estou eu dando aula e vem um bilhetinho: “E aí, professor, o peixe de ontem estava bom?”. Pensei: “Gente, o que é isso? Episódio de Além da Imaginação? Big Brother?”. No fim da aula, a explicação: o aluno que me enviara o bilhetinho era namorado de uma das moças que estavam no almoço. Ela, claro, disse pra ele que me conhecera e o moço aproveitou pra brincar sobre o peixe.

Como eu digo, só não tínhamos a fortuna dos “rock stars”. A exposição talvez fosse mais ou menos parecida.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

3 Comments

  1. Quantas pessoas passam por nossas vidas, não? O melhor de tudo é que os encontramos em todos lugares, sim! Na cidade que resido temos algumas frases: “quer encontrar com Pinhalense é só sair de Pinhal!” Outra: “Pinhalense tem em todo lugar”. Por fim, são encontros inesperados e deliciosos.

    • Angelo Antonio Pavone disse:

      Olá Prof Vitor
      Muito boa esta sequência das memórias do professor de cursinho.
      Não éramos roqueiros, mas muito conhecidos também. Tenho muitas recordações semelhantes.
      Parabéns pela crônica. Acho que essas memórias merecem um livro.

  2. Baltasar Pereira disse:

    Estou gostando muito das Crônicas do tempo em que o Cronista era Professor no Cursinho.

    Interessante como encontram alunos e alunas em diversas partes do Mundo

    Quando um Professor e Ótimo Professor marca é um ótimo sinal.

    Que histórias ao reencontrar alunos de muitos anos atrás e em suas diversas profissões ou em locais de Turismo, Diversões ou Mercados ou Hospitais.

    Histórias de Vida.

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