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MEMÓRIAS DE UM CURSINHO – II

Se houve uma ordem da direção que eu nunca, jamais obedeci, foi a proibição de pegar os tais bilhetinhos dos alunos. Em todas as reuniões de começo de ano, vinha a ordem para não pegarmos os bilhetinhos que chegavam das mais diversas partes da classe. Passando de mão em mão, eles chegavam ao tablado, e o aluno da frente os entregava ao professor.

Alguns deles se justificavam: eram alunos tímidos, que tinham pavor de levantar a mão no meio de uma classe com 200 pessoas para fazer uma pergunta – a qual poderia ser bizarra ou mesmo ridícula, dependendo de seu teor. E, aí, em tempos do politicamente incorreto comendo solto, o cidadão ou cidadã era alvo de gozação. Vi apelidos nascerem por causa de uma pergunta absurda; vi alunos mudarem de classe por causa do bullying (palavra que nem existia em nosso vocabulário há alguns anos) em razão de uma pergunta óbvia.

Por causa disso, eu pegava os bilhetinhos, lia-os todos e respondia à dúvida do aluno. Essa era a única razão? Claro que não! Eu adorava quanto vinha algum bilhetinho mais apimentado, com alguma brincadeira mais inteligente ou mesmo com observações relevantes à matéria. Lógico que sempre tomei cuidado para que a leitura desses bilhetes não interferisse no andamento da aula: se eu estivesse no meio de uma explicação importante, pegava o bilhete e deixava-o de lado, para ler depois.

Não critico aqui os professores que se recusavam a lê-los, mesmo porque muitas vezes vinham “aquelas pérolas” que os adolescentes produziam e que só serviam mesmo para quebrar o ritmo da aula. A direção tinha razão em não permitir que pegássemos os tais papeizinhos, mas eu não resistia à tentação de ver o que haviam escrito. Raramente, víamos de onde o papel surgia. Digo raramente, porque os alunos eram dissimulados, as salas eram enormes e, de lá do tablado, não dava pra ver quem havia escrito e enviado para seu colega da frente, que passava para o outro e assim sucessivamente.

Faz pouco tempo, estive limpando pastas e gavetas. Acabei encontrando dezenas, dezenas mesmo, de bilhetes de alunos e alunas – alguns alegres, outros carinhosos, outros ainda melancólicos e até mesmo alguns bastante angustiados, que expressavam a insegurança própria dos vestibulandos diante da escolha de um curso, de uma universidade e de uma profissão. Os carinhosos elogiavam a aula, elogiavam a explicação ou mesmo elogiavam o professor – ou a ideia que faziam de nós. Os melancólicos vinham até com o desabafo de uma frustração amorosa ou uma paixão não correspondida por alguém da própria classe. Os mais divertidos e debochados, claro, vinham com cantadas para o professor mesmo. E eu me divertia e divertia a classe quando os lia em voz alta.

Vou citar alguns exemplos dos que encontrei aqui guardados depois de tantos anos. São muitos, como já disse, não vou reproduzi-los todos, apenas alguns “publicáveis”. Ri bastante com eles – são ingênuos, picantes e até bem inteligentes:

“Você não é sofá, mas me faz perder o controle”; “Professor, me chama de telescópio que te faço ver estrelas”; “Você não é música, mas está na minha lista de reprodução”; “Estou igual melancia quente: louco pra te fazer mal”; “Professor, sexo é igual a vestibular: não importa a posição, o importante é entrar”; “Você é gostoso assim ou tá fantasiado de pastel com caldo de cana?”; “Você não é rebelião em presídio, mas deixa o colchão pegando fogo”; “Professor, você tem colher? Porque estou dando sopa”; “Você pode não ter rede social, mas estou sempre te curtindo”; “Não sou Pedro I, mas pra você eu digo que fico!”; “Professor, vou sugerir à direção que troque seu avental por um uniforme de bombeiro”. E por aí afora! Era uma maneira que eles tinham de lidar com a tonelada de matéria e com a pressão dos vestibulares.

Esses são alguns exemplos do que chegava às minhas mãos. Omiti os mais picantes. Entre brincadeiras e risadas, creio que alguns exprimiam seus verdadeiros desejos. Havia, claro, heteros, homos e bissexuais entre eles e elas. Dava para saber, mais ou menos pela letra, se vinham de um rapaz ou de uma moça.

Tudo ia nessa toada… até que um professor, amigo meu, disse que meu corte de cabelo parecia o do Cascão, da Turma da Mônica!

Pra quê? A coisa se espalhou mais que fogo em mato seco! Foram centenas de bilhetinhos, gibis, desenhos e montagens de fotos minhas com o menininho encardido que não gosta de tomar banho. Em todas as salas, bilhetes carinhosos – nunca ofensivos – associando o personagem a mim. E risadas, muitas risadas quando eu fingia que estava bravo. Tudo encenação, porque eu me divertia. Não me importava nem um pouco.

Lembro que houve um ano em que a apostila de Português trouxe uma questão envolvendo exatamente um quadrinho do Cascão. Bilhetinhos e mais bilhetinhos dizendo que eu era famoso e fazia parte das questões do vestibular. Uma farra!

Por conta do apelido, um aluno criativo (e inteligente) escreveu até um poema, com rima e tudo – versos nos quais se vê o talento a serviço do mal. Aí vai:

SONETO DO VÍTOR

Venho agora utilizar-me do engenho
Espero que você preste atenção
Estou escrevendo com o máximo empenho
Um soneto ao professor Cascão.

Espero não estar intrigando a ti,
Professor de alma generosa.
Sua aula é boa para sorrir,
Mestre Beto Barbosa.

Sei que contigo o povo implica,
Mas vá em frente, solte a franga,
Dance, cante o “Adocica”.

Escrevi este soneto, sabendo que nada ganho,
Mas, por favor, me responda:
És Cascão pelo cabelo ou por falta de banho?

Está assinado simplesmente “Luiz, sala 34, noite”. Muito bom! Espero que este moço esteja bem, onde quer que esteja.

Por fim, se eu tivesse me recusado a pegar bilhetes e envelopes dos alunos, não teria, hoje, um dos presentes mais legais que recebi em sala de aula. Uma moça me mandou um envelope grande, que veio passando de mão em mão. Ela ficou tímida em vir falar comigo na frente de todos. Peguei o envelope e abri. Dentro, claro, uma folha de sulfite com o Cascão desenhado – mas este era especial. Vinha com uma dedicatória muito bacana e a assinatura inconfundível: “Para o professor Vítor, com um abraço! Maurício.”

A aluna era afilhada do Maurício de Sousa. Contou ao padrinho que o professor tinha esse apelido, e o criador da Turma da Mônica, muito generoso, me mandou o presente.

Inesquecível!

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

4 Comments

  1. Baltasar Pereira disse:

    Tinha acabado de ler “Memórias de um Cursinho I”e pensei que poderia vir logo uma Continuação e para minha surpresa e muito boa Surpresa,chegou esta Crônica.

    Achei muito legal da parte do Cronista em ter guardado os bilhetes e envelopes.

    Imagino o que deva ter de escrito nestes bilhetes.

    Em relação a História do Cascão que linda a História da afilhada lhe entregando o desenho.

    Fico imaginando o quanto de Emoções e Lembranças boas e ruins deve ter o Cronista.

  2. Guilherme Sardas disse:

    Que texto leve e envolvente, e quanta história boa vivida! Valeu, Vitão!

  3. Angelo Antonio Pavone disse:

    Olá Prof Vitor
    Beleza de crônica. Bons tempos aqueles do cursinho. Esses bilhetes dão cores expressivas àquela época. Brilhante lembrança.
    Parabéns pela crônica.

  4. Professor, que leitura prazerosa, delícia esta Crônica. Jovens inteligentes e com “tiradas” ótimas, no caso os bilhetinhos. E pensar que, na nossa época se escrevêssemos como nos bilhetinhos seríamos suspensos. E que surpresa receber um presente do Maurício de Sousa.

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