Às vezes, trazemos segredos que não ousamos revelar para ninguém – mas nem sempre é possível guardá-los. Se a luz do dia é um motivo para que escondamos nossos sentimentos mais preciosos, a noite pode ser um convite para que consigamos mostrar o que guardamos no nosso íntimo… Existe uma hora certa para uma declaração de amor?
A cena se passa numa noite fria de julho, esquina da rua Marquês de Itu com Praça da República. São 3h da manhã, domingo para segunda-feira, pouco movimento devido ao frio. Um michê, loiro, 1,75m, atlético, olhos azuis, de Santa Catarina, atravessa a rua e vai falar com outro – um negro, mesma altura, que chegou da Bahia há um ano e ainda não se acostumou com o clima de São Paulo. Então, o loiro diz assim:
– Cara, que frio! Posso falar com você uma coisa? Olha, faz um tempo que estou pra levar esse papo e não encontro o momento certo. Então, vai aqui mesmo, nesta noite fria, só eu e você nesta rua gelada… acho que não vai pintar nenhum cliente, hoje, não. Melhor: assim não fico mal de ver você entrar no carro de um estranho, nem sou obrigado a ir pra casa e encontrar aquele quarto sem você. Não aguento mais isso! Acho que você nunca percebeu nada e, se percebeu, foi um ótimo ator. Estou apaixonado por você desde que te conheci… não, não, me deixa terminar de falar, não me interrompe! Tem que ser agora, senão não vou conseguir nunca mais.
Toma fôlego, olha pro chão, pras estrelas do céu límpido, numa noite de vento cortante, e prossegue:
– É uma tortura muito grande ver você com outros; é uma dor que não suporto mais cada vez que você chega contando que fez isso, que fez aquilo e o escambau. Eu sei que eu também sou um michê e também tenho meus clientes na noite, os caras que me pegam, que me pedem para mostrar o pau na calçada e que me põem dinheiro na cueca na rua mesmo. Mas, desde que te conheci não tenho cabeça pra mais ninguém e muito menos pra esta vida. Sei que a hora é estranha, sei que eu não devia sentir o que estou sentindo, mas queria você pra mim. Só isso! Queria ter você na minha cama, não só na pensão, no quarto que a gente divide. Queria você pra mim. Cara, que frio! Tô congelando aqui! Seguinte: vamos embora de São Paulo, tentar a vida juntos em outro lugar… ou aqui mesmo, sei lá! A gente pode parar com esse negócio de fazer programa, arranjar um trabalho como todo o mundo arranja. Voltar a estudar, alugar um apartamento… aí, eu não teria mais que ver você com outros, indo embora na madrugada e me deixando aqui na calçada, porque, se você reparou, eu não vou antes de você – dou mil desculpas pros caras que param. Enquanto você está aqui, faço hora, enrolo, mas não vou embora. Aí, quando você vai com alguém, tenho vontade de morrer, é uma dor, cara, que corta o peito, mais do que esse vento frio que tá soprando agora. Prometi para mim mesmo que nunca falaria isso pra você. Tive esperança de que passaria, de que era só uma paixãozinha de nada. Aí, o tempo foi passando, a gente foi ficando amigo e olha: não tiro você da minha cabeça. Naquela noite em que o cara do carro vermelho te humilhou por causa da tua cor, minha vontade foi socar a cara dele até deixar o fulano desfigurado. Filho da puta!
Quem ele pensava que era? Pena que você não me deixou bater nele. Senti como se tivesse sido comigo… você chorando depois que ele se foi, dizendo que sentia saudade da tua terra, da tua família, das praias, do calor… e eu ali, do teu lado, querendo te abraçar, te beijar, te fazer carinho… e não podendo! Caralho, vou morrer de frio aqui hoje! E teve aquela outra vez em que aquele casal de estrangeiros te levou pro hotel em que eles estavam. Na manhã seguinte, você veio contando que não quiseram te pagar e ainda te desafiaram a fazer escândalo porque, aí, a gerência ia te “expulsar do hotel porque você era um simples garoto negro de programa” e eles eram gente cheia da grana e importante. Ele era político e adorava ver a mulher dando pra outro. Nunca mais me esqueci disso. Isso é vida, cara?
Na noite deserta, só o barulho do vento nas folhas das árvores. Como o negro olha para o chão e não diz nada, o loiro respira fundo, deixa o ar gelado penetrar em seus pulmões e termina:
– Vou embora de São Paulo amanhã! Não dá mais pra ficar perto de você sem ter você. Será que nunca vou provar o gosto do teu beijo, o calor do teu abraço? Vou morrer com esta vontade? Vamos embora, cara. Tá frio, as boates já fecharam, o Bailão já acabou, não vai passar ninguém aqui a esta hora. Vem comigo, fica comigo hoje, dorme agarrado a mim. Nem sei dizer o quanto gosto de você… me dá uma chance, vai!
Ele é interrompido por um carro que para. O motorista se dirige ao negro que, depois de uma breve negociação, entra no veículo e se vai na noite escura, sem olhar pra trás. No meio da névoa que cobre a cidade, o rapaz loiro, bonito e atlético se senta no meio-fio e, com as mãos geladas, enxuga as primeiras lágrimas que começam a cair.
4 Comments
Creio que ha ummomento certo para um declaração de amor, por outro, não.
Mais uma crônica, mais uma estória.
Tanto sentimento, nessas palavras que contam uma declaração de amor!
Muito triste, muito lindo!
Eu fui lendo e ficando cada vez mais curioso sobre como o outro rapaz iria reagir. Que aflição, pois o rapaz Loiro ia falando e o outro sempre quieto. Final triste,mas realista. Gostei muito.🤗🤗👍👍
Triste imaginar que isso é mais comum do que parece. Essa indiferença por parte do outro, esse silêncio e frieza que congela mais do que a baixa temperatura do momento. Que o rapaz sofra tudo o que tiver de sofrer, e seja feliz neste novo lugar. Torço por ele, como torço por tantos outros que ainda sofrem em silêncio.