
Estudiosos e não estudiosos da língua, todos sabem que ela vai mudando com o passar do tempo – palavras desaparecem, termos novos ganham vida, construções ficam arcaicas, estrangeirismos são adotados etc. Além disso, temos os dois níveis de linguagem – o chamado “coloquial” (nas nossas conversas do dia a dia) e a “norma padrão”, ditada pela Gramática e ensinada nas escolas.
De uns tempos para cá, tenho observado um fenômeno interessante envolvendo o verbo “entregar” – verbo bem conhecido de todos. Acho que, por força do termo em inglês, “to deliver”, o nosso verbo passou a ser empregado de forma a acompanhar uma tradução literal.
Vejamos: quando eu era menino, usava-se esse verbo, no futebol, para se dizer que um time havia feito “corpo mole” diante de outro – havia “entregado o jogo”. Hoje, nas numerosas e entediantes mesas redondas, nos canais esportivos, ouvem-se os cronistas dizerem: “Tal contratação foi um sucesso: o jogador está entregando o que se esperava dele”; “O time não entregou, nesta temporada, o que podia com o plantel que possui”; “A Seleção Brasileira não vem entregando o que poderia com esses jogadores” etc.
E isso não ocorre apenas no âmbito do esporte – no ambiente corporativo também: “Esse funcionário entregou o que a chefia esperava. Provavelmente, será promovido”. Ouvi de um economista na TV: “Tal aplicação está entregando muito bem neste semestre”. E por aí afora. O citado verbo virou uma espécie de Bom Bril, com 1001 utilidades. Se você entrega, você é uma pessoa de sucesso!
Outro verbo onipresente – e com uma novidade – é o verbo “atentar”. Esse verbo terá um significado “x” ou “y”, dependendo da preposição que se utilizar depois dele – a chamada regência verbal. Vamos lá: “atentar para/em/a” significa “prestar atenção” – “Os alunos atentavam para a explicação do professor”. “Atentar contra” quer dizer “cometer atentado” – “Os terroristas atentaram contra a embaixada ontem”. Com complemento expresso por uma outra oração, significa “levar em conta, considerar, observar” – “Ela atentou que o barulho talvez acordasse o avô”.
O leitor mais atencioso percebeu que em nenhuma dessas construções o verbo “atentar” é pronominal, isto é, não é usado com pronome do caso oblíquo como se lê em toda parte. “Não me atentei para o problema”; “Ele não se atentou àquele detalhe”; “Não nos atentamos às instruções do mestre”, etc. De acordo com a norma padrão, essas mesmas frases seriam: “Não atentei para o problema”, “Ele não atentou àquele detalhe”, “Não atentamos às instruções do mestre”. Penso que essa inclusão do pronome tenha seu nascedouro nas redes sociais – alguém escreve, milhões leem e repetem e a coisa vai como fogo em mato seco. Tenho visto isso em muitas redações de alunos e em comunicados e anúncios oficiais, além de propagandas em rádios, TVs e internet.
Um aluno me perguntou se, num futuro próximo, essa forma pronominal do verbo “atentar” não poderia ser aceita e até ensinada nas escolas. Talvez, sim. Hoje, ainda não. Lembro que meu avô dizia que, no seu tempo de menino, escrevia-se “porisso” e “pharmacia”; meu pai, por sua vez, aprendeu “sòmente” e “dôce”, por exemplo.
Mudanças! A minha geração aprendeu a escrever “idéia”, “heróico” e “agüentar”, entre outras, mas o uso vai gerando o costume, que, por sua vez e aos poucos, elimina o estranhamento dessas palavras sem acento e sem o trema.
Por falar em reforma ortográfica, o argumento de que ela serviria para uniformizar a língua em todos os países lusófonos não me convence – sobretudo porque as grandes diferenças estão no vocabulário e na semântica, e elas não são eliminadas com a forma de se grafar uma palavra. Aqui, continuaremos a falar “ônibus”, “trem” e “esmalte” – e os portugueses, “autocarro”, “comboio” e “verniz”. Continuaremos a tomar nosso “sorvete”; eles, o seu “gelado”. Mandamos mensagens com nossos “celulares”; eles, em seus “telemóveis”. Se devemos atravessar a rua na “faixa de pedestres”, eles devem atravessar na “passadeira”. “Rapariga”, vale lembrar, não tem o mesmo significado lá e aqui.
Enquanto um brasileiro está lendo, um português está a ler. E a vida segue.
2 Comments
Olá Prof Vitor
Beleza de crônica.
Assim a nossa língua portuguesa vai se modificando lentamente. É interessante a quantidade de inserções, algumas bastante “alienígenas ”
Parabéns pela crônica
Professor, suas Crônicas são ricas e profundas, tenho aprendido muito. A língua portuguesa é fascinante, e a cada dia leio mais e mais para que o meu português seja o mais correto possível. Dias atrás fui chamado de “antipático” por escrever corretamente – prefiro ser antipático a desinformado. Sei que cometo erros, mas sempre procuro me corrigir para não cometê-los novamente. Quanto a Crônica, mais uma aprendizado! Obrigado por nos ensinar, viu.