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6 de março, 2023
PRECONCEITO, CONSERVADORISMO E BURRICE
27 de março, 2023
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O ETARISMO

“Envelhecer não é para maricas” – Bette Davis (1908 – 1989), atriz americana.

 

Pegou (muito) mal o vídeo em que três estudantes de uma faculdade do interior de São Paulo debocham de uma outra aluna por esta ter 40 anos e, segundo as moças, não ter mais idade para estar numa graduação.

Bem, constatam-se duas idiotices: a primeira, o próprio preconceito das cidadãs que se julgam acima do envelhecimento e da ação do tempo – não sabem que a única alternativa à decadência física é a morte enquanto são jovens; depois, a burrice e a mania de gravar tudo o que fazem e falam para soltarem nas tais redes sociais… nem que isso lhes cause vergonha, a elas e à família. Estupidez vezes dois!

Vivemos, assim, um dilema interessante: com as novas descobertas da ciência e de como podemos prolongar nossa estada neste planeta, estamos vivendo mais do que nossos avós, por exemplo. Até aí, nenhuma novidade, pois qualquer pessoa a par de seu tempo sabe que muita coisa mudou na Medicina preventiva e mesmo na Medicina, digamos, curativa. O fato é que, se vamos viver mais, também vamos conviver cada vez mais com o jovem debiloide que nos olhará com desdém, do alto de seu pedestal e de sua imortalidade (coitado!), como se ele mesmo não fosse passar pelo mesmo processo.

Durante muitos anos, fui professor de cursinho pré-vestibular. E meus melhores alunos eram mais velhos do que eu: não estavam lá pra brincadeiras e irresponsabilidades. Queriam aprender, queriam ser aprovados em seus exames, queriam fazer a tão sonhada faculdade – alguns deles queriam a segunda ou terceira graduação. Como pagavam pelas aulas, sabiam que não deviam desperdiçar o dinheiro que, muitas vezes, era suado e ganho depois de um dia inteiro de trabalho. Muitos iam para o cursinho sem tempo sequer para um lanche depois de trabalharem o dia todo. E, convenhamos, é necessária uma dose muto grande de determinação para se aguentar esse tranco.

Num certo ano, a direção pediu (mandou) que eu desse aula de inglês para algumas turmas – eu era professor de Redação e Gramática. A gente sabe que inglês é “aula-espanta-aluno” ou, para alguns, “aula vaga”. Muita gente ia embora etc. Pois bem: minha melhor aluna era uma senhora de mais ou menos 50 anos que tinha vivido nos Estados Unidos durante muito tempo e que tinha voltado para o Brasil porque queria fazer faculdade aqui. Cansada dos subempregos que enfrentara na América, queria mudar de vida. Ela nunca, jamais matou a minha aula. Humilde, sabendo inglês muito bem, prestava atenção às minhas aulas e era muito simpática. Inesquecível!

Segundo os dicionários, o termo “etarismo” diz respeito “à discriminação por idade contra indivíduos ou grupos etários com base em estereótipos. O etarismo é um tipo de preconceito e pode assumir muitas formas. Isso vai desde atitudes individuais até políticas e práticas institucionais que perpetuam a discriminação etária”. Claro que ele pode ser identificado na escola, no trabalho, na família etc. Basta que haja um idoso cercado por jovens preconceituosos e (por isso mesmo) desrespeitosos.

A falecida professora Ecléa Bosi, em seu livro “Memória e Sociedade – Lembranças de Velhos”, escreve: “(…) A característica da relação do adulto com o velho é a falta de reciprocidade que se pode traduzir numa tolerância sem o calor da sinceridade. Não se discute com o velho, não se confrontam opiniões com as dele, negando-lhe a oportunidade de desenvolver o que só se permite aos amigos: a alteridade, a contradição, o afrontamento e mesmo o conflito. Quantas relações humanas são pobres e banais porque deixamos que o outro se expresse de modo repetitivo e porque nos desviamos das áreas de atrito, dos pontos vitais, de tudo o que em nosso confronto pudesse causar o crescimento e a dor! Se a tolerância com os velhos é entendida assim, como uma abdicação do diálogo, melhor seria dar-lhe o nome de banimento ou discriminação (…)”. Bonitas e duras palavras da professora!

 

Já o também falecido psiquiatra Contardo Calligaris fala sobre a questão de uma viúva idosa que vive com os filhos e netos e resolve levar um homem para dormir com ela: “Ia ser proibido, o que é bem engraçado. A mulher de 60 anos não pode transar no lugar em que vive, e a neta de 17 pode”.

 

No universo homossexual, há muito que o negócio de envelhecer preocupa e incomoda os homens. O ideal de juventude e uma vaidade desmedida são responsáveis, em grande parte, por academias cheias de gente mais preocupada com o corpo do que com a saúde. Se antigamente homens gays valorizavam a cultura e a inteligência, hoje a estampa é que manda: quanto mais vazios e fúteis, mais acham que estão sintonizados com nosso tempo. Não querem crescer, não querem assumir a idade que têm e procuram bobagens juvenis como filmes de super-heróis, roupinhas transadas, carrões, celulares de última geração etc. Se não suportam a própria idade, como vão tolerar que alguém envelheça perto deles?

Voltando ao caso das cidadãs, aquelas estudantes que debocharam da colega na faculdade, só nos resta lembrar de Nelson Rodrigues e do apelo que ele fez há mais de 60 anos: “Jovens, envelheçam!”.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

5 Comments

  1. Baltasar Pereira disse:

    Com O começo da Crônica com Bette Davis e o final citando Nelson Rodrigues já valeu a pena ler está Crônica.

    Isto do Etarismo é algo que preocupa,pois todos nós, desde que nascemos ,já começamos a contagem regressiva para irmos embora deste Mundo,sejamos crianças, jovens, adultos ou Idosos.

    Realmente é Triste ver como são tratados os chamados “Idosos” em uma Sociedade na qual se valoriza muito o Corpo e a Futilidade.

    Tratar o Idoso com respeito ,atenção e permitindo que o mesmo dê a sua opinião é muito importante,pois aprendemos e muito com eles,além da interação de uma geração com a outra.

    Realmente triste o caso que aconteceu recentemente das três estudantes de Faculdade debochando da outra Estudante só por ter 40 anos ou mais.

    Muitas vezes quando vou comer em algum local observo nas outras mesas como as pessoas se comportam com os idosos que o estão acompanhando.

    Infelizmente reparo que algumas vezes o deixam de lado.

    Bela Crônica que trata de um tema espinhoso para nossa Sociedade.

  2. Professores, continuem professando, a missão de vocês é continuar olhando nos olhos do futuro que estão sentados (as) à frente de vocês, e de forma anônima e incessante. Continuem a mudar o mundo, tenho a certeza que só a educação transforma!

  3. Angelo Antonio Pavone disse:

    Olá Prof Vitor
    Belíssima crônica de um assunto bastante atual. Estamos em uma época em que educação, respeito e civilidade estão em desuso. A atitude dessas três jovens de gravar e publicar o repugnante vídeo só terá o efeito de deixar para a posteridade a sua total falta de educação, empatia e respeito pelo próximo.
    Parabéns pelo texto.

  4. Roberto disse:

    Oi, Vitão! Texto atual, triste e impecável! Parabéns e abraços

  5. Clarice keri disse:

    Que texto maravilhoso, triste é o assunto e acho inacreditável que alunas de ensino superior tenham esse tipo de comportamento, lamentável, adorei a reflexão, obrigada.

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