Em 1597, William Shakespeare escreveu a peça “O Mercador de Veneza”. O contexto histórico é importante para que se entenda seu enredo e os temas que o autor abordou em sua composição.
Resumindo de forma bastante imprecisa, pois é sempre necessário que se tenha contato com a obra do escritor inglês, a peça trata da paixão entre Bassânio e Pórcia: ele é um nobre falido que precisa de dinheiro para viajar e conquistar sua amada; ela é uma rica herdeira pretendida por outros homens, mas que não se interessa por eles. Diante dessa dificuldade de Bassânio, o comerciante António, seu amigo, pede dinheiro emprestado ao judeu Shylock, um agiota. Este impõe uma condição para o acordo: se António não conseguir pagar a dívida, terá de quitá-la com uma libra de carne do próprio corpo.
Só se compreende a proposta de Shylock quando se sabe que ele fora muito ofendido por António devido ao fato de ser judeu. Assim, ele vê uma chance de se vingar das ofensas recebidas por causa de sua origem. Nesse ponto, portanto, a peça trata do antissemitismo, mas não é o único tema abordado.
Existe um programa magnífico da BBC inglesa chamado “Shakespeare Uncovered” (algo como “Shakespeare Revelado”) no qual psicólogos, diretores, atores e atrizes falam sobre as peças do dramaturgo inglês, analisando enredo, personagens, contexto histórico etc. Por algum tempo, a TV Cultura exibiu esse programa, mas acho que não está mais na grade da emissora. Bem, um dos mais interessantes foi exatamente o que analisava “O Mercador de Veneza”.
Segundo os entrevistados, para além dos temas óbvios da trama – como preconceito racial, intolerância religiosa, interesse financeiro, vingança, amizade, fidelidade, amor -, a peça também trata da homossexualidade de António e seu amor dissimulado por Bassânio!
Na história, o comerciante humilha-se diante do agiota Shylock – o mesmo homem que António ofendera com seu preconceito – para conseguir dinheiro a fim de que Bassânio possa se casar com sua amada. Vejo aí um raro altruísmo: António vai em auxílio do homem que ele mesmo deseja, não para conquistá-lo, pois sabe que isso não é possível, uma vez que Bassânio ama Pórcia, mas para vê-lo feliz ao lado de sua amada.
Quantos de nós seriam capazes de tal postura e disposição? Comumente se diz que o amor não é egoísta, ele quer ver a felicidade da pessoa amada… mas também há um velho e poderoso ditado que apregoa: “No amor e na guerra, vale tudo”. O que quero dizer é que António poderia ser um obstáculo para a felicidade de Bassânio, interpondo-se entre este e Pórcia, tentando impedir que o casamento se concretizasse. Não bastasse a dificuldade financeira do amigo, ele, António, ainda poderia criar dificuldades para que o outro não fosse feliz ao lado da amada.
Não creio que o amor se mostre sempre com esse grau de altruísmo e abnegação. Alguns dirão: “Ah, então não é amor!”. Tenho minhas dúvidas. Fico pensando num romance como “O Morro dos Ventos Uivantes” (da também inglesa Emily Brontë) no qual todo o amor de Heatcliff transforma-se em ódio, mágoa e vingança exatamente por não poder ter Catherine Earshaw ao seu lado. Ele vai procurar feri-la, porque ele é um homem ferido. Mas nunca deixa de amá-la. A mente humana é realmente muito interessante e assustadora!
António, por sua vez, ama em silêncio – estamos falando de uma peça do século 16! E o melhor modo de dissimular esse amor impossível é mostrá-lo sob a forma de uma amizade incondicional e fiel, resistente a tudo: até mesmo ao orgulho e à humilhação de pedir dinheiro emprestado a um homem mal visto como Shylock (ele mesmo com seus dramas familiares na história). Quantos homossexuais apaixonam-se por heteros e sabem que não serão correspondidos! Eu mesmo, quando jovem, experimentei isso. E sei que dói.
É também de “O Mercador de Veneza” a famosa passagem que traz muito do ressentimento de Shylock por causa do antissemitismo:
“Sou um judeu. Então, um judeu não possui olhos? Um judeu não possui mãos, órgãos, dimensões, sentidos, afeições, paixões? Não é alimentado pelos mesmos alimentos, ferido com as mesmas armas, sujeito às mesmas doenças, curado pelos mesmos remédios, aquecido e esfriado pelo mesmo verão e pelo mesmo inverno que um cristão? Se nos cortam, não sangramos? Se nos fazem cócegas, não rimos? Se nos envenenam, não morremos? Mas, se nos ultrajam, não podemos nos vingar?! Se somos como vocês quanto ao resto, também somos semelhantes nisso.”
Cinco séculos depois de escrita, a peça tem muito a dizer sobre intolerância e preconceito. E penso que a fala de Shylock ainda poderia ser proferida por muitos – entre eles, negros, emigrantes de países pobres e homossexuais.
4 Comments
Muito interessante o ponto de vista abordado,creio que o ser humano só muda no tempo e no lugar a essência permanece a mesma.
A mente humana é realmente uma caixinha de surpresas…o que vai no íntimo e aflora ? Dor, Amor? Penso que só a alma espiritualizada pode dizer…
Gosto muito de suas reflexões amigo !❤😍
Já li algumas das Obras de Shakespeare, mas esta não havia lido e pelo breve resumo que foi passado muito me interessou.
Como uma Obra escrita há tantos Séculos, possui histórias tão atuais e o pior que em pleno Século XXI.
Preconceitos de quaisquer níveis ali aparecem e como é triste de ver que ainda continuam.
Gostei da Frase do personagem Shylock no final da Crônica, pois retrata muito bem quem sofre o preconceito e muitas vezes também este que sofre humilhações também possui seus preconceitos.
A Vida é ou melhor possui muitas nuances dentro de cada Ser Humano.
Interessante, parece um comentário de um filme bem atual, adorei , obrigada.