ATOR PORNÔ
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OLIVIA
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O TREM

A tarde quente daquele começo de dezembro. Alguns rapazes em festa por saírem daquele lugar, enquanto outros ficam tristes porque só sairão um ou dois meses depois. A roupa comum no lugar da farda, da surrada farda usada durante todo o ano. O cabelo que não precisará ser raspado semanalmente. A barba que poderá crescer, dependendo do gosto do jovem.

E tudo o que ficará pra trás. As madrugadas mal dormidas. Os infinitos serviços na guarda, o sono terrível em colchões cheios de pulgas. O fuzil junto ao corpo. O maldito fuzil que não precisará mais ser limpo e acariciado como se fosse a coisa mais importante do mundo. “A namorada do soldado”! Ódio daquilo!

A mãe de cada um que não precisará mais secar a farda com o ferro elétrico em dias de chuva; a goma para que a mesma farda fique em pé e o filho ganhe um elogio dos oficiais. A família servindo junto, no sofrimento da mãe, no orgulho do pai e no riso debochado dos irmãos. O cansaço, a raiva, o sono pesado no meio do barro e debaixo da chuva do acampamento inútil. O tal teste de sobrevivência, a fome, o mergulho no rio de lama, o fotógrafo que quer registrar tudo aquilo (pra quê?) como se fosse um motivo de alegria. A comida horrível, a ordem unida interminável, o riso forçado no lugar do choro. A paródia de uma música de sucesso –  “Se você vê estrelas demais, é reunião de oficiais / Chega perto e diz: banjo!” –, como uma forma de atenuar aquele clima opressivo. A lavagem cerebral.

A humilhação, tanta humilhação que se acaba achando aquele tratamento natural e normal. Absurdo! Os gritos do sargento no ouvido – “Inútil! Idiota! Incompetente! Imprestável! Cagão!” –, o soco do tenente no capacete de fibra, que se racha por causa do golpe e o riso de cabos, sargentos e subtenentes. Mais humilhação. E querem formar jovens valentes e corajosos…

O medo de uma punição e a proibição de ir pra casa naquele dia – justo quando mais se quer a cama limpa, o travesseiro convidativo, o jantar que a mãe preparou. O corpo exausto. A falta de sentido em tudo. O serviço militar obrigatório – obrigado por nada, senhor Olavo Bilac!

A inveja que se sente dos amigos que, dispensados e livres daquele inferno, seguiram sua vida normal de estudos, namoro e trabalho, e sabiam que, à noite, certamente estariam em casa, sem um alarme de prontidão inesperado.

O vocabulário, as gírias daquele lugar. A prisão para o jovem que desobedecer, o trabalho forçado. Tudo em nome de se formarem os guardiões da pátria.

Por isso e muito mais, aquela tarde é uma tarde de festa. Os rapazes festejam sua liberdade. Marcham pela última vez até a estação de trem, conduzidos por um cabo ou por um sargento qualquer. Estão com seus jeans, camisetas, tênis confortáveis. Um passo pra fora e estarão em suas vidas civis novamente: a recompensa por “não terem dado alteração”!

A plataforma da estação repleta daqueles moços. Quase um ano entre a primeira viagem e a primeira baixa. Eles festejam. Estão felizes, prometem que vão se encontrar (não vão!), que vão continuar com a amizade fortalecida nos dias difíceis daquele lugar. Só promessas. Alguns deles vão se encontrar ocasionalmente. Outros irão pra longe, para outras cidades, para outros estados, para outro país até.

Entre eles, um que se senta calado à janela do trem que chega vazio àquela hora – 3h da tarde. Ele se senta e está muito mais feliz do que pode expressar. Talvez ninguém tenha odiado tudo aquilo mais do que ele. Pensa em tanta coisa! Fica olhando pela janela, enquanto o vagão vai se enchendo de jovens de outros quartéis vizinhos. Alívio! Aquele ano acabou!

Ele observa a paisagem se mover. Casas pobres de bairros pobres – algumas de alvenaria, a maioria de madeira. Uma criança sem camisa empina uma pipa. Alguns moleques, também sem camisa e descalços, jogam bola no campinho improvisado de terra seca. Uma mulher estende roupas no varal. Um sino bate a hora certa, numa igrejinha solitária, no alto de uma colina. É uma tarde quente de começo de dezembro, o Natal está chegando, um outro ano se aproxima. O rapaz abre o vidro e deixa o vento bater no rosto. Agora, é voltar pra casa, procurar emprego, retomar a vida, tentar ser feliz a seu modo.

Mesmo deixando tanta coisa indesejada pra trás, um rosto irá com ele. Um oficial, um homem a quem ele não teve coragem de dizer o que queria. Um olhar, um desejo, um pensamento, fantasias proibidas. Uma troca de olhares, uma patrulha numa noite de chuva, as instruções recebidas e obedecidas. A distância mantida, a continência prestada, o abraço não dado, a separação definitiva. Nunca mais se encontrarão. Tudo por causa da bendita hierarquia. A maldita hierarquia!

 

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

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