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O CASAMENTO
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O ÚLTIMO DIA

Seu Maurício, eu queria falar com o senhor antes do senhor sair pro trabalho. Hoje é meu último dia trabalhando pro senhor. Não, não tem nenhuma reclamação de salário, de muito trabalho, de apartamento grande, de distância… nada disso. Nesse ano em que trabalhei aqui, sempre fui bem tratada pelo senhor. O senhor nunca deixou de me pagar direitinho e de me dar os meus direitos, não. Até gosto muito de vir aqui, porque o senhor é solteiro, não tem esposa chata que fica pegando no pé da gente e vendo defeito no serviço dos outros… sem falar que não tem criança também. Trabalhar em casa que tem criança é um desespero sem fim.

O negócio, seu Maurício, é que não posso continuar numa casa onde não mora o bem, nem a virtude, nem a retidão. O senhor traz esses meninos pra dormir no quarto do senhor e eu não tava entendendo o que acontecia. Ora, se o senhor só tem uma cama no quarto, esses meninos que vêm aqui só podem dormir na sua cama, né? E isso, seu Maurício, não tá certo, não, senhor.

Sou religiosa, sou do bem, prego a palavra divina sempre que posso para tentar salvar as almas perdidas deste mundo que se afastou tanto de Deus. Lá na igreja, a gente sempre ouve falar desse povo que não segue o caminho do Bem e não faz nada para louvar quem criou e botou a gente neste mundo. Então, acho que o senhor tá perdido e cego porque não enxerga o que está fazendo com sua vida.

Fiquei matutando, matutando e contei tudo pra minha irmã, sabe? Ela me disse que o filho da vizinha foi expulso de casa pelo pai porque não casava, não olhava pras moças do bairro, não se interessava por ninguém e só vivia na companhia de uns moços estranhos com roupas esquisitas, com jeito de mulher. Tingia o cabelo, comprava blusas femininas e nunca jogava bola com os moleques da rua. O pai se encheu e estourou: deu uma surra no filho e mandou o rapaz embora, diante da mulher que chorava que nem criança, mas que entendeu, porque sabia que o filho tava errado e o marido era o chefe da casa.

Aí, seu Maurício, entendi que o senhor praticava o mesmo pecado que o filho da vizinha. A diferença é que o senhor não tem pai pra botar o senhor pra fora, pra expulsar o senhor daqui. O senhor acha certo o que faz com esses meninos, um diferente por semana, loiro, moreno, branco, preto, alto, baixo, magro, forte, sardento? O senhor acha que vai pro céu depois que morrer, praticando uma vergonha dessa aqui na Terra? Tenho pena da alma do senhor, seu Maurício. Oro muito pra ver se o senhor toma jeito e deixa de pecar como tem pecado. O Inimigo é traiçoeiro, seu Maurício. Quando a gente fraqueja, aí é que ele dá o bote e desvia a gente da luz. Se o senhor não luta, não consegue a vitória contra o Mal.

        Eu queria fazer um convite pro senhor ir na minha igreja. Os cultos são bons pra dar uma luz pra gente, pra fazer a gente ver o que tá fazendo de errado no mundo, envergonhando a Deus diante de Suas criaturas. Trouxe até um folheto pro senhor e deixei ali em cima da mesa. O senhor tem dinheiro, ganha bem, tem um bom emprego, então uma contribuição não iria lhe fazer falta. Acho que esse é o único jeito de purificar e salvar sua alma, seu Maurício.

Na minha terra, quem faz o que o senhor faz, papel de mulher com outro homem, corre o risco até de ser assassinado porque suja o nome da família, viu? Sua sorte é morar numa cidade grande e não lá na minha terra. Tem um irmão lá da igreja que diz que quem pratica esse tipo de pecado – se deitar com outro homem – só pode estar possuído por uma coisa muito ruim, uma tentação para afastar a pessoa de Deus. Todo o mundo diz que a Aids tá aí, seu Maurício, para castigar essa gente que não tem medo de Deus.

Eu tenho muito medo d´Ele e vou continuar no caminho do bem. Faço minhas orações, procuro ser honesta, fiel ao meu marido, aos meus oito filhos, aos meus parentes que precisam de mim e que correm na minha casa na hora do aperto. Sou trabalhadeira, seu Maurício, fico limpando as casas dos outros o dia inteiro e, de noite, ainda vou fazer janta pro meu marido e pros meus filhos… os que ainda moram comigo. Moro longe daqui, mas não reclamo disso, não. Só reclamo quando vejo uma alma ofendendo a Deus como o senhor tá fazendo com sua vida.

O inferno existe, e é pra lá que vão os pecadores como o senhor. O senhor não tem medo, seu Maurício? Não lhe ensinaram que se deitar com um homem é proibido e contra a natureza? Como uma pessoa assim pode ser feliz? Não tem jeito, seu Mauricio. Não tem jeito! O homem foi feito pra gostar de mulher e a mulher foi feita pra gostar do homem – senão, como é que vão ter filhos? Como é que vão aumentar a família sem o casamento?

Seu Maurício, estou tentando trazer a palavra divina pro senhor. Deixe essa vida enquanto é tempo… arrependa-se enquanto pode, porque, depois, o castigo pode ser terrível! Não quero nem pensar! O pastor disse que os filhos maus merecem a punição, a não ser que eles se arrependam aqui na Terra. O caminho da virtude é estreito, seu Maurício, e poucos conseguem encontrar e caminhar por ele.

Trabalhar aqui é muito bom, seu Maurício. Quase não tem poeira; os livros e os discos, é o senhor quem limpa; o senhor nem almoça em casa e eu trabalho sossegada, sem amolação; ainda assim, seu Maurício, sua casa está imunda pelo pecado e suja pelo Mal.

Não adianta ter paredes brancas se o ambiente é impuro e corrompido.

Por tudo isso, seu Maurício, hoje é meu último dia aqui, viu?

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

5 Comments

  1. Ricardo Cano disse:

    Que monólogo assustadoramente forte e pungente! Estou atordoado!
    Parecia que ela estava na minha frente. Dava pra sentir o calor das palavras.

    • Então estou no pecado há anos! Esse tipo de gente, no caso da faxineira aqui chamamos de ex.
      Não generalizando, mas ex nesse caso são as pessoas que “pintaram e bordaram”, depois começaram frequentar a igreja e gostam de dar lição de moral.

      Conheço vários e várias “ex”.

  2. Roberto disse:

    Essa situação deve ser bem comum em residências desse Brasil. Parabéns por mais essa crônica, Vitão! Abraços, Bob.

  3. Angelo Antonio Pavone disse:

    Olá Prof Vitor
    Excelente crônica. Digamos que se trata de um fato até comum atualmente. E também não faltam interessados em conseguir um terreninho no céu
    Como diz o Dr Drauzio “se você se preocupa com quem seu vizinho dorme, você precisa de tratamento”. Oh Lord!!!
    Parabéns pela crônica.

  4. Clarice keri disse:

    Nossa, não sei o que falar desse monólogo, você conseguiu tirar minha respiração, parece minha vizinha falando dos pecados alheios, adorei imaginar a cena, muito boa.

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