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OPINIÕES

fonte: site uol

O rádio que Carmela mantinha tocando no chão, sob a mesa, em contato com o carpete cinza do escritório, dava o tom de alegria do escritório e animava a turma. A moça dizia que não conseguia trabalhar sem música, e todos acabaram se acostumando com seu rádio. Era sexta-feira, e o grupo de cinco amigos – na faixa dos 23, 24 anos – contava os minutos para arrumar suas coisas e sair dali o mais depressa possível. Além do término do expediente e do fim de semana que chegava, a sexta era sempre dia de muita cerveja no bar da rua Álvares Penteado, no centro velho de São Paulo.

Àquela hora, 5h45 da tarde, a estação predileta da moça tocava um sucesso qualquer daquele ano de 1981. Rod Stewart, já veterano, emplacava “Young Turks” e, de certa forma, a canção já animava a turma a sair, curtir e esquecer o trabalho pelo menos até segunda-feira. Carmela perguntou a Dênis se iriam ao mesmo bar de sempre; o moço riu e perguntou o porquê da dúvida; o rapaz passou de mesa em mesa, perguntando a todos se iriam. Marta, Marcos e Zeca confirmaram que sim. Como sempre, beberiam muita cerveja, comeriam muitos salgadinhos e só voltariam às respectivas casas mais tarde, com a costumeira carona do Zeca, o único que tinha carro.

Quando chegaram ao Bar do Juca, às 6h15, quase todas as mesas já estavam tomadas pelo pessoal que trabalhava nas redondezas. Com muito custo, arrumaram uma para cinco no interior do bar, embora quisessem a calçada. Paciência! Mesmo com o agito do lugar, o barulho não era insuportável e era possível se conversar com facilidade.

Foi Marta quem começou a polêmica. Ela disse, toda animada, que tinha um primo gay, um rapaz de 30 anos, que a convidara para ir a uma boate com ele no sábado, isto é, no dia seguinte. Mal continha a empolgação, pois nunca pisara num lugar como aquele. Dênis, depois de beliscar uma batatinha e de tomar um gole de cerveja, disse que estava fora daquele programa, porque não desperdiçaria uma noite de sábado numa boate “com tanto homem e sem nenhuma mulher”. Não tinha nada contra, mas não curtia aquilo de jeito nenhum.

Carmela, sempre animada, disse que adoraria ter um primo assim, alguém “que bagunçasse a chatice da família” dela. Pousando a mão sobre a de Marta, pediu: “Você pede para seu primo me levar um dia também?”.

Marcos foi diplomático em seu comentário. Com seu jeito mais tímido, disse que talvez ela se divertisse, mas preveniu a amiga de que ela poderia sentir uma profundo tédio num lugar onde ninguém olharia para ela com intenção de paquera ou de transa. Já tinha ouvido dizer que as músicas eram as melhores para se dançar – as melhores discotecas eram aquelas. Por fim, respeitando a amiga, tomou um gole de cerveja, e pediu que ela lhe contasse tudo na segunda-feira. Marta sorriu também e, com todo o carinho, deu um beijo no rosto de Marcos.

Zeca não disse nada. Cara fechada, continuou bebendo de seu copo, olhando para o vazio, sem participar da conversa, embora não perdesse uma única palavra. Parecia distante, só o corpo presente, como se não estivesse ali de verdade. Personalidade mais difícil dos cinco amigos, quase nunca deixava que alguém lhe adivinhasse os pensamentos. Mostrou-se mal humorado com o rumo da conversa quando foi convidado a participar e dar sua opinião. Era reconhecidamente conservador, um tanto puritano e moralista, tanto que tomavam cuidado com os temas dos bate-papos quando ele estava junto.

Marta notou que o amigo estava incomodado. Depois de comer um salgadinho, ralhou com ele, dizendo que estavam nos anos 80 e que não tinha cabimento tanto preconceito e tanta rabugice. Eles eram jovens, o país estava naquela enrascada de ditadura, e as pessoas não deviam alimentar velhos valores e preconceitos. O moço, ao ouvir o pequeno sermão de Marta, encheu o copo, beliscou um pedaço de queijo com um palito, levou-o à boca e começou a falar.

– Não sou obrigado a aceitar esse tipo de coisa. Homem tem é que gostar de mulher. O que é que você ganha indo a uma boate gay? Você não tem nada melhor pra fazer numa noite de sábado, minha filha? Que vida triste, hein… Sabe quando eu vou botar meus pés num lugar como esse? Jamais! Jamais pisaria num lugar assim – primeiro, porque detesto dançar; depois, porque eu me sentiria mal num ambiente assim; e, mais, quer saber? Acho que eu partiria para a ignorância se fosse assediado por um homem. Nojo!

Um clima pesado se instaurou na mesa. As moças ficaram com raiva, os outros rapazes sentiram-se constrangidos com os comentários de Zeca, e não se achava meio de driblar aquilo. O moço havia sido realmente desagradável. Passara um pouco dos limites. E, de mais a mais, não custava nada ter sido um pouco mais sensível e menos sincero e grosseiro com a amiga.

Foi nesse momento que, do nada, um rapaz alto, moreno, de vasto bigode, com a gravata em uma das mãos e a cerveja na outra, e já bastante alto, aproximou-se e pediu passagem. Chegando perto de Zeca, pegou-lhe pelo ombro e disse em alto e bom tom:

– Zé Carlos! Que bom que te ver aqui! Cara, por que você sumiu? Nunca mais eu te vi na sauna. Você ficou de ligar para acertar aquela transa e sumiu… Pô, liga pra mim. Ainda moro no mesmo apartamento.

De cara fechada, Zeca levantou-se e saiu do bar sem olhar pra trás. Entre risos e caras de espanto, os amigos ficaram estáticos.

Moral da história: sempre desconfio muito de homofóbicos, pois o mundo é redondo – de tanto ir para o leste, você acaba no oeste!

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

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