“O que tem de ser tem muita força”, diziam os antigos.”Maktub” – assim estava escrito -, dizem os árabes. E a natureza de cada um se mostra quando tem de se mostrar…
OS MENINOS
No pátio da escolinha, a professora Rita olha atentamente as crianças que se jogam na areia, descem pelo escorregador, brincam nos balanços, trepam nas gangorras e pulam corda. Passados os 30 minutos dessa atividade, propõe que todos formem uma roda, “Um menino de mão dada com uma menina”, para lhes ensinar algumas cantigas. As crianças obedecem devagar, algumas sem vontade, pois a brincadeira livre estava boa. Aos poucos, todos obedecem à professora e a roda é formada.
Quando vai iniciar a brincadeira, contudo, a professora nota que André e Matheus estão lado a lado, de mãozinhas dadas, prontos para obedecer ao que Rita vai mandá-los fazer. Então, a professora vai até eles e explica: “André, pegue a mãos de uma menina. Matheus, você também. Vocês não podem ficar de mãos dadas. Não é assim que vamos brincar”. André, o mais falador, uma figurinha de cinco anos de idade, pergunta: “Por que, professora? Por que não posso ficar de mão dada com o Matheus?”. Rita explica que a brincadeira não é assim e, respirando fundo, separa os dois garotinhos.
Hora de entrar para a sala de aula e brincar com as massinhas. Rapidamente, André e Matheus se sentam um ao lado do outro e ficam olhando pra ver se a professora vai separá-los novamente. Ela não separa. E então os dois se divertem, fazendo tudo o que podem com as massinhas coloridas, um ao lado do outro, ombrinhos colados, braços juntos, perninhas coladas também.
A tarde se passa tranquilamente, lá fora cai uma garoa fina e fria, ao contrário da manhã ensolarada daquele dia. Matheus olha para André e pergunta se este gosta de chuva. André responde que não, gosta de sol. Matheus diz que gosta de chuva porque a professora disse que as árvores ficam mais bonitas e as flores ficam mais contentes. André responde: “É mesmo…”.
Estão no mês de junho e Rita fica com a missão de ensaiar a quadrilha que será apresentada para os pais dos dez meninos e das dez meninas que compõem sua classe. Logo no primeiro ensaio, ela instrui seus aluninhos para que fiquem aos pares – e, de novo, André e Matheus ficam juntos. Rita, com muita paciência, a paciência característica de professoras e professores, separa os meninos e diz que eles precisam ficar com as meninas. Matheus será o noivo, Beatriz será a noiva. Pronto! Matheus protesta que ele não quer se casar com Beatriz, e a professora ri e fala que é tudo de mentirinha. André observa e olha para Beatriz com ciúme. Fecha a carinha e fica ao lado de Matheus.
No dia da festa, tudo corre bem. Os pais, orgulhosos de seus pequenos, que dançam direitinho; a professora, contente pela bonita quadrilha; a diretora aliviada pelo sucesso da festa. Todos comem bolo de fubá, pipoca, pamonha, paçoca, bebem suco e correm pelo pátio enquanto os pais ficam conversando sobre as crianças e as coisas engraçadas que fazem em casa. É uma oportunidade rara de se encontrarem, pois só se veem rapidamente quando vão levar ou buscar seus filhos na escola – ou ainda nas reuniões semestrais.
As rodas dos pais são animadas. Conversam e riem e se apresentam, identificando-se também pelo nome do filho. “Somos os pais da Juliana”, “Nós somos os pais do Pedro”, “Nós, do Paulinho”… a festinha está agradável nesta tarde de sábado frio de junho. Quando um casal muito simpático diz “Nosso filho é o Matheus”, um outro casal responde prontamente: “Ah, vocês são os pais do Matheus? Somos os pais do André… nosso filho fala muito do filho de vocês em casa. Pelo jeito, um é o melhor amigo do outro aqui. É o Matheus pra lá, o Matheus pra cá… eles se gostam muito…”.
Nesse momento, os dois garotinhos se aproximam da roda de adultos; vestidinhos de caipiras, estão muito engraçados e bonitinhos com seus chapéus de palha, suas camisas xadrez, calças jeans e botinhas de borracha. O lenço amarrado no pescoço deixa os meninos ainda mais encantadores.
Os pais param de conversar e se dirigem aos garotinhos. Os dois estão juntos, lado a lado, e os pais os olham com vontade de rir. É o pai do André que pergunta: “Filho, esta pipoca está boa? Me dá um punhado?”. André é generoso, dá o pacote pro pai e todos riem. O pai pega um pouquinho e devolve o saco de papel branco para o filho. A mãe de Matheus pergunta se o menino está gostando da festa. Ele, com a boca cheia de algodão doce, faz que sim coma cabeça. Saem correndo pelo pátio, e é a vez de a professora se aproximar para conversar com os pais das crianças.
Conversam, riem com alguns casos de sala de aula que ela lhes conta, e a tarde, apesar de fria, está animada. A professora pede licença e se afasta. Vai conversar com outros pais, vai dar uma volta e ver se tudo está bem. Dá uma parada na barraca dos bolos, pede uma fatia grande de bolo de coco com fubá e vai comendo enquanto caminha pela escola. Ouve algumas vozes de crianças na sala de aula, que deveria estar vazia e trancada durante a festa.
Olha pelo vidro da porta e vê dois de seus alunos sentados no chão, comendo seus doces e conversando sozinhos. Eles estão encostados na parede e as perninhas esticadas, os chapeuzinhos no chão. A professora os olha e está pronta para fazê-los voltar à festa lá fora.
Fica imóvel, porém, sem saber o que fazer quando os dois garotinhos se aproximam mais e trocam um demorado beijo. Riem muito da travessura que fizeram. E repetem o que parece lhes fazer muito bem.
Rita sente um misto de surpresa e angústia. Surpresa por não ter percebido nada antes; angústia por saber que ela terá de ser a primeira a censurá-los, a separá-los e a condená-los – situação que possivelmente eles enfrentarão muito na escola, na família e na vida dali em diante.
3 Comments
Infelizmente a beleza se perde na realidade e no preconceito.
Infelizmente a realidade é que a pureza se perde no preconceito.
Na minha época do “primário”, vivi uma situação semelhante.