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PASSADO

“(…) E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.” – Carlos Drummond de Andrade – “Infância”.

 

Interessante e, ao mesmo tempo, difícil o modo como algumas coisas da nossa infância se agarram à nossa memória e lá ficam pra sempre. E a gente, de vez em quando, se lembra do fato e revive o momento – para o bem ou para o mal.

Há pessoas que conseguem perdoar porque se esquecem… ou se esquecem porque conseguem perdoar. Não sei ao certo. Eu tenho uma dificuldade com as duas coisas. Claro que também já errei e precisei ser perdoado; é lógico que já decepcionei pessoas e gostaria que meu ato fosse esquecido. Mas tenho uma memória boa até demais às vezes.  

O ditado diz que “parente é serpente”, e, por conta disso, somos obrigados a conviver com gente desagradável, cruel, cuja língua viperina não mede esforços para a ofensa e para a grosseria. Penso que as maiores indelicadezas são sempre ditas com um sorriso nos lábios. Línguas venenosas sempre existiram e sempre existirão.

Foi numa reunião de família que um tio de uma prima minha – que não era nada meu – olhou pra mim e sentenciou: “Este aqui vai ser veado!”. Eu, com 11 anos de idade, senti aquelas palavras como se fossem uma adaga entrando no peito e me rasgando de cima a baixo. Vergonha total, vontade de fugir, pés grudados no chão, rosto vermelho, o mundo pesando em meus ombros. Evitei olhar pra minha mãe e pro meu pai. Ele, sempre mais calmo, nada disse. Ela, sempre mais voluntariosa, respondeu: “Cuidado, fulano: você está criando também”. O clima desagradável, o prazer daquele homem em afirmar aquilo para uma criança de 11 anos de idade que jamais lhe havia feito qualquer mal.

A dor que a gente sente quando alguém nos acorda para alguma coisa que não queríamos ou não estávamos preparados para enxergar! O constrangimento, a humilhação; os pais, irmãos, avós, tios e primos olhando pra gente, a vontade de desaparecer. E a marca indelével, pra sempre.

A minha vida seguiu. Jamais toquei nesse assunto com alguém e acho que a coisa caiu no esquecimento. Mas quem apanha não esquece.

Tenho pra mim que aquele cidadão apenas expressou – com toda a sua maldade – o que outros já pensavam. Eu não tinha maturidade para enxergar, mas deve ter havido uma certa satisfação no rosto de outros parentes que estavam presentes. Parafraseando Bertold Brecht, a cadela da intolerância também está sempre no cio.

Vi aquele homem mais umas duas ou três vezes depois do acontecido. Na minha condição de menino, eu me escondia, evitava ser visto por ele. Com medo de um outro veredito que pudesse me ferir ainda mais e me envergonhar de novo, eu evitava a sua presença.

Hoje me pergunto o que poderia ter levado uma pessoa a falar algo assim para uma criança. Maldade pura? Talvez. Os homens nem sempre são bons. Mais tarde, fiquei sabendo que ele era um estelionatário e um golpista de marca maior, tendo sido preso várias vezes, para tristeza e vergonha de sua família. Essa, sim, verdadeiramente humilhada.

Nunca mais me esqueci daquele dia. Depois de adulto, jamais tive coragem de falar com meus pais sobre aquele episódio, e nem sei se eles se lembravam daquilo.

Foi esse um dos meus primeiros contatos com o preconceito.

Foi assim que, ainda muito menino, fui levado a ter vergonha de mim mesmo.

 

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

5 Comments

  1. Professor, um dos meus primeiros contatos com o preconceito foi na minha adolescência.

    Fui chamado de veado no clube da sociedade aqui da cidade, na frente de muita gente.

    Não deixei barato, a resposta ao indivíduo foi instantânea, os presentes riram e fizeram piadas ao agressor.

    Hoje o clube está fechado, e o cidadão foi sepultado há anos.

  2. Baltasar Pereira disse:

    Nossa!

    Esta Crônica vai direto ao assunto do Tema sobre a Maldade do Ser Humano ou do que o Ser Humano é capaz.

    Fiquei imaginando a cena do encontro familiar e a forma infeliz e pejorativa como foi dita a frase.

    Fiquei sentindo o que este garoto deve ter sentido,fora a vergonha de não saber o motivo do Tio desta prima ter feito isto.

    Desta maneira,vamos nos protegendo e nos fechando para as pessoas e o Mundo com medo do que possa nos ocorrer.
    Bela e Triste Crônica.

  3. Ricardo Cano disse:

    Que mais adultos aprendam a recitar esta canção/oração com Karen Carpenter:

    “Bless the beasts and the children,
    For in this world they have no voice,
    They have no choice.
    Bless the beasts and the children,
    For the world can never be,
    The world they see.

    Light their way
    When the darkness surrounds them;
    Give them love, let it shine all around them.
    Bless the beasts and the children;
    Give them shelter from a storm;
    Keep them safe;
    Keep them warm.”

  4. Clarice keri disse:

    História triste, o bom foi você ter perdido o contato com essa pessoa horrorosa e pequena, e creio ser impossível esquecer, que bom que você é forte e não precisa dessa recordação pra nada, mas adorei saber, obrigada.

  5. Angelo Antonio Pavone disse:

    Olá Prof Vitor, bom dia
    Belíssima crônica. É um exemplo gritante de que a ignorância está ao alcance de todos.
    Parabéns
    Grande abraço

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