É curioso – e às vezes triste – como nossas vidas poderiam render um livro ou um filme. Dramas, dilemas, alegrias, tristezas, realizações, frustrações ou renúncias… tudo isso compõe nossa passagem por este mundo. Renúncias!
Fiquei um tanto tocado pelo obituário do coronel Edward Thomas Ryan, no Albany Times Union, jornal do estado de Nova York. Ryan era um coronel aposentado da 10ª Brigada, na cidade de Nova York, e posteriormente um bombeiro em Rensselear, no mesmo estado. Foi também um membro vitalício do “Vietnam Veterans of America”. Recebeu muitas medalhas e honrarias durante sua dedicada carreira, incluindo uma ‘Medalha em Defesa da Liberdade” por sua participação no combate aos atentados de 11 de setembro de 2001.
A matéria informa que Ryan tinha cinco irmãos e vários sobrinhos e sobrinhas. Dedicou sua vida à profissão, que ele estimava e amava muito. Ironicamente, foi basicamente por causa de sua carreira que ele teve de carregar um segredo por toda a vida.
Depois dos detalhes sobre sua vida profissional e sobre as conquistas alcançadas, Ryan pediu que as seguintes palavras fossem incluídas em seu obituário: “Tenho de lhes dizer mais uma coisa. Eu fui gay pela minha vida inteira: durante a escola fundamental, durante o secundário e durante a faculdade, por toda a vida. Fui apaixonado e me relacionei com muito amor e carinho com Paul Cavagnaro, de Northe Greenbuch. Ele foi o amor da minha vida. Ficamos 25 anos juntos. Paul morreu em 1994, quando passou por uma cirurgia mal sucedida. Serei enterrado perto de Paul. Sinto muito por não ter tido a coragem de me assumir gay. Tive medo de ser desprezado pela família, pelos amigos e pelos colegas do trabalho. Vendo como as pessoas como eu eram tratadas, simplesmente não fui capaz de me assumir. Agora que meu segredo é conhecido, vou descansar em paz para sempre”.
A matéria também informa que muita gente prestou homenagens a Ryan, agradecendo tanto por ele ter sido quem foi, quanto pelos serviços prestados com seu trabalho. E a gente fica pensando…
Triste que uma pessoa tenha vivido “nas sombras” por tanto tempo, com medo do que os outros poderiam dizer ou fazer. E quantas histórias como essa existiram e existem neste mundo! Nem sempre é fácil explicar situações assim para os mais jovens, esses mesmos jovens que nasceram com as redes sociais e pensam que sempre se pôde gritar sua sexualidade aos quatro ventos.
Lembro de minha juventude nos anos 80 e do medo que eu sentia da rejeição daqueles que eu considerava meus amigos – alguns demonstraram que gostavam de mim de qualquer forma, outros confirmaram minhas suspeitas e se afastaram, preconceituosos que eram.
Pra complicar, eram os tempos da explosão da Aids no Brasil e no mundo: se os gays eram tradicionalmente mal vistos, a doença só piorou o conceito que as pessoas tinham sobre nós. Afinal, a Aids era um castigo e os gays eram os culpados!
Eu era muito jovem. Não participei de uma militância, não caminhei nas ruas em protesto contra a homofobia, não fui uma voz ativa contra as injustiças que se levantavam. Encolhi-me e me escondi o máximo que pude; o que mais me aterrorizava era a possibilidade de fazer meus pais passarem vergonha, e eu mesmo ainda não tinha estrutura para aguentar as ofensas que viriam.
Fiquei mais velho, mudei, cresci. Hoje, não faz parte de minha vida quem não conhece essa parte de mim. Quem diria!
A matéria não informa a idade do senhor Edward Thomas Ryan, mas ele devia ser mais velho do que eu e, assim, deve ter vivido em tempos ainda mais repressivos e com pessoas ainda mais conservadoras.
Dizem que viver com medo é viver pela metade, mas, em determinadas circunstâncias e contextos, a metade basta, diante do medo de não se ter vida nenhuma.
2 Comments
Olá Prof Vitor
Excelente crônica. Breve, sensivel e comovente.
É uma síntese da intolerância e do preconceito que acompanham nosso tempo.
Parabéns
Belíssima homenagem, pena que viveram nas sombras, mas tudo a seu tempo! Eu fiquei escondido durante muito tempo, tinha medo de perseguições por parte de amigos, moradores da cidade onde moro, da minha família, inclusive. Não sou militante, não participo de protestos e passeatas, sou extremamente “na minha”, mas quem me conhece sabe “o apito que toco”.
Hoje com mais idade, estou leve e solto, criei uma barreira para que me respeitassem.