NOSSA LÍNGUA PORTUGUESA
9 de dezembro, 2025
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PRISÕES

Sempre gostei de escrever e receber cartas – e gosto muito de ler livros de cartas também. Estou lendo agora “Cartas a Theo” (Editora 34), uma seleção do que o pintor holandês Vincent van Gogh escreveu para seu irmão ao longo da breve vida que ambos tiveram.

Na carta cujo trecho reproduzo abaixo, de 1880, van Gogh amarga seu fracasso como pregador religioso, o que lhe vale a hostilidade da família e duras críticas por parte de Theo. No período, o futuro pintor está deprimido e vivendo entre os trabalhadores miseráveis do Borinage (Bélgica), e o pai cogita internar o filho em um asilo psiquiátrico. A família desiste da ideia e continua ajudando Vincent com o envio de roupas e dinheiro; o irmão lhe mandou 50 francos – tudo isso, obviamente, humilha o rapaz.

Na passagem, Vincent fala ao irmão sobre o “ócio” e distingue, em sua opinião, dois tipos diferentes de pessoas ociosas. Angustiado e triste, sente-se preso, embora saiba que tem talento para alguma profissão que ainda não descobriu e para a qual ainda não está totalmente preparado. São nítidas a sua mágoa e a sua aflição diante da família, exatamente por se enxergar inútil e perdido.   

Fiquei pensando naqueles momentos em que, por alguma razão, eu me via preso e não conseguia encontrar uma saída, um rumo para a minha vida, mesmo que fosse somente uma fase. As fases, ainda que passageiras, também deixam marcas – às vezes, indeléveis. Ficam as marcas das cobranças dos outros e de nós mesmos diante do mundo que não para e exige que tomemos assento, que encontremos a todo custo o nosso lugar.

Deixo a carta falar por si.   

       

Cuesmes, 24 de junho de 1880.

Meu caro Theo,

É um pouco a contragosto que lhe escrevo, não tendo feito já há tanto tempo e isso por muitas razões. Até certo ponto, você se tornou um estranho para mim, assim como eu para você, talvez mais do que você pense, e talvez seja melhor não continuarmos desse jeito (…)

Escrevo-lhe um pouco ao acaso aquilo que vem à minha pena. Eu ficaria muito contente se de algum modo você pudesse ver em mim outra coisa que não um ocioso. Porque há ociosos e ociosos que formam um contraste.

Há aquele que é ocioso por preguiça e por fraqueza de caráter, pela baixeza de sua natureza. Se você achar adequado, pode me tomar por um desses. Depois, há o outro tipo de ocioso: o ocioso que, a despeito de si próprio, é corroído internamente por um grande desejo de ação, que não faz nada porque se encontra na impossibilidade de fazer alguma coisa, pois é como se fosse prisioneiro de algo, porque não tem aquilo que lhe é necessário para ser produtivo, porque a fatalidade das circunstâncias o reduz a esse ponto. Alguém assim nem sempre sabe o que poderia fazer, mas sente por instinto: “No entanto sou bom em alguma coisa! Sinto em mim uma razão de ser! Sei que poderia ser um homem completamente diferente! No que poderia eu, então, ser útil? Para que eu poderia servir? Há alguma coisa dentro de mim… mas o quê?”. Esse é um ocioso totalmente diferente, e você pode, se achar adequado, me tomar como um deles.

Um pássaro em uma gaiola, na primavera, sabe muito bem que há alguma coisa na qual ele seria bom (…) no entanto, o prisioneiro vive e não morre, nada do que se passa dentro dele transparece do lado de fora; ele se comporta bem, fica mais ou menos animado com um raio de sol. Mas, então, vem a temporada de migração (…) ao olhar o céu do lado de fora, sente uma revolta contra o destino. Ele quer ser um pássaro como os outros pássaros!

Os homens se encontram muitas vezes na impossibilidade de fazerem alguma coisa, prisioneiros de não sei qual gaiola horrível, horrível, muito horrível! Há também, eu sei, a libertação, a libertação tardia. Uma reputação arruinada com ou sem razão, a penúria, a fatalidade das circunstâncias, a infelicidade – isso tudo faz prisioneiros.

Nem sempre sabemos dizer o que confina, o que empareda, o que parece enterrar; no entanto sentimos nem sei que barras, nem sei que grades – paredes. Tudo isso é imaginário, fantasia? Não acho. E depois nos perguntamos: “Meu Deus, isso dura muito tempo? Isso é para sempre, isso é pela eternidade?”.

Sabe? O que faz a prisão desaparecer é a afeição profunda, séria. Sermos amigos, sermos irmãos, amarmos, isso abre a prisão com uma potência soberana, com um encantamento muito poderoso. Aquele que não tem isso permanece morto – ali onde renasce a simpatia renasce a vida.

E a prisão algumas vezes se chama Preconceito, mal-entendido, ignorância fatal disso ou daquilo, desconfiança, excesso de escrúpulos (…) 

Se for possível a você ver em mim não um ocioso da espécie ruim, eu ficaria bem satisfeito. E, se alguma vez, eu puder fazer alguma coisa por você, ser útil, saiba que estou à disposição. Estamos bastante distantes, mas, em algum dia ou em algum momento, um poderá ajudar o outro. Por hoje, aperto a sua mão, agradecendo mais uma vez pela bondade que você teve para comigo.

Se, mais tarde, você quiser me escrever, faça-o.

 

Cordialmente,

 

Vincent.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

1 Comments

  1. Verônica disse:

    Emocionante !!!

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