Chega um momento em que o amor tem que falar. Chega uma hora em que o silêncio não basta, e o olhar não é mais do que um paliativo para a distância. Chega um dia em que as palavras são essenciais.
QUARENTENA
“Só se ama aquilo que traz algo de inacessível;
só se ama o que não se possui”
– Marcel Proust, escritor francês (1871 – 1922)
Ele tem 18 anos e é filho de um casal de amigos meus aqui do prédio. Somos vizinhos há quase 20, por isso vi esse rapaz nascer, fui testemunha da alegria de seu pai quando soube que a esposa estava grávida, bem como do primeiro enjoo dela, suas noites mal dormidas, barriga grande, calor intenso na cidade que não a deixava confortável e, finalmente, o bebê que chegou do hospital.
As muitas visitas, os presentinhos, o carinho dos parentes e amigos etc. Lembro-me da primeira vez que o peguei nos braços. Ele chorava e o pai, cansado, disse, enquanto sua esposa fazia a mamadeira: “Tome. Pegue um pouco essa criaturinha. Quem sabe se, nos seus braços, ele para um pouco de chorar…”. E ele parou!
O tempo foi passando. Continuei a ser uma testemunha de sua infância, de suas festinhas de aniversário, de seus primeiros dias de escola. Cheguei a ir à sua festa de “formatura do pré-primário” na escolinha do bairro. E ele foi crescendo…
Lembro-me bem de sua entrada na adolescência – ele era um jovem simpático com todos aqui do prédio, mas retraído e reservado. Passava a maior parte do tempo estudando para as provas da escola e, mais tarde, para o vestibular. Sendo engenheiro, cheguei a lhe dar algumas dicas de Física e Matemática. E ficamos todos na torcida para sua aprovação numa grande universidade pública.
Lembro-me da festa que seus pais fizeram para comemorar sua entrada no curso de Direito, Largo de São Francisco, passagem de tantas figuras importantes de nossa história. Nessa mesma festa, quando todos se foram, ficamos ele, seu pai e eu sentados na sala, enquanto a mãe, exausta, ia pro quarto e dizia que só arrumaria toda a bagunça no dia seguinte.
Seu pai me convidou para “uma última cerveja com o futuro advogado”. E eu aceitei. A propósito de alguma coisa, ele disse, sussurrando, para a esposa não ouvir: “Agora, ninguém segura esse rapaz… vão chover garotas na faculdade. Chega de estudar tanto, sem dar um tempo pro coração, meu filho. Nem sei como você nunca trouxe uma moça aqui em casa… Vou pegar mais cerveja na geladeira…”.
Ficamos só ele e eu na sala. Ele, que estava de cabeça baixa, aparentemente pensativo, distante, aproveitou a ausência do pai para me dizer: “Sabe por que nunca trouxe ‘uma moça aqui em casa’?”. Continuei olhando para ele, esperando a resposta da sua própria pergunta. “Nunca trouxe ninguém porque eu sempre amei você. É você que eu sempre quis. É você que eu quero!”.
A conversa foi interrompida pela chegada do pai com três latas de cerveja nas mãos. Sentou-se ao lado do filho e, passando a mão sobre seus ombros, sentenciou: “Ah, no ano que vem, uma nova vida te espera, garoto! Está feliz?”. Ele respondeu com um sorriso. Abriu sua cerveja e, enquanto bebia, olhava para mim, uma olhar que misturava desejo, tristeza e uma expressão que não consegui decifrar.
Voltei para meu apartamento – éramos e somos vizinhos de frente – um pouco surpreso com sua revelação. Não posso negar que várias vezes eu o observei mais como homem do que como filho de meu amigo. Mais de uma vez, senti atração por seu corpo malhado, principalmente quando descíamos no elevador juntos, ele com sua bicicleta, dizendo que iria encontrar os amigos para “pedalar por algumas horas”. No verão, sua camiseta regata revelava seu peito musculoso e seus braços fortes, além das coxas desenvolvidas pelos exercícios constantes. Eu, contudo, mantinha a distância. Se por um lado aquele jovem me perturbava, por outro eu não cogitava a possibilidade de que ele pudesse me olhar – eu, amigo de seus pais, 30 anos mais velho, um homem solitário que se acostumou mais em ver a vida do que a vivê-la.
Depois do que ele disse, sempre houve entre nós um clima de cumplicidade, não de concretização. Eu respeitava e respeito seus pais, achava e acho que eu não poderia avançar os limites daquela amizade tão importante para mim. E sempre me mantive afastado, distante fisicamente, embora não conseguisse tirá-lo do pensamento. Os dias foram se passando, já faz um ano que ouvi sua declaração – e espero que ele tenha entendido que eu me sinto da mesma forma com relação a ele. Quanto desejo, quanta vontade de tê-lo pra mim, quanto amor guardado no peito!
Um ano! Hoje, estamos vivendo dias estranhos – vírus, pandemia, mortes em vários países, o horror na Itália, os noticiários que nos assolam com números assustadores, velhos como o principal grupo de risco (mas pessoas de todas as idades padecendo mundo afora), a ordem para ficarmos em casa, isolados. Uma quarentena como melhor forma de se parar a disseminação desse inimigo que veio lá da China. Apreensão, medo, dúvidas…
Já faz uma semana que estamos todos na respectivas casas. A previsão é de que isso se estenda por mais três ou quatro meses. Tudo parado. Somente os serviços essenciais continuam lá fora, mas nem eles são capazes de quebrar o silêncio assustador das ruas desertas. Tudo lembra um daqueles filmes catastróficos de Hollywood…
O casal de amigos me faz uma chamada de vídeo pelo whatsapp. Dizem que estão de malas prontas para o sítio que eles têm no interior de São Paulo. Dizem que não aguentam mais esta cidade com esse clima opressor. Perguntam se não quero me juntar a eles no “exílio bucólico” que estão se impondo. Agradeço e digo que prefiro ficar em casa, com meus livros, filmes e músicas. Desejo boa viagem aos três, recomendo que se cuidem etc. É ela quem pega o telefone e diz: “Nosso jovem advogado não vai. Só pra contrariar e tirar meu sossego, diz que prefere ficar… diz que vai aproveitar para estudar e pôr a matéria da faculdade em dia. Cada uma! Se ele precisar de alguma coisa, você dá uma olhada nele pra mim?”.
Sorrio e digo que sim, claro. Eles podem viajar sossegados que eu ficarei de olho no filhote deles.
Minutos depois, ouço a porta do apartamento da frente se fechar. Logo em seguida, é a vez da porta do elevador. Volto para o meu sofá na manhã um tanto fria deste mês de março. Caneca de café numa mão; celular na outra.
Gosto de acreditar que ele ficou por minha causa. Não sei se estou sendo tolo, um tanto fora da realidade, sonhando mais do que se pode sonhar nesta fase da minha vida. Gosto de saber que não estou sozinho neste andar; sinto-me menos só ao saber que do outro lado do corredor há alguém que pode estar pensando em mim como eu estou pensando nele. Sorrio para mim mesmo e vou lavar a louça do meu café da manhã.
Nesse momento, o celular acusa a chegada de uma mensagem. Enxugo minhas mãos e digito a senha de acesso no aparelho. Vejo a foto dele e uma mensagem breve; breve e intensa e linda como a própria juventude:
– Amo você!
3 Comments
Nossa que história, boa para uma continuação, ficarei esperando.
No momento estou vivendo a frase do escritor francês Marcelo Proust, “Só se ama aquilo que traz algo de inacessível, só se ama o que não se possui”.
Que linda estória de Amor Platônico. Sem se envolverem conseguimos sentir o Amor ,Tesão e Carinho que os une.
Mesmo que no final sabemos que não ficarão juntos ,esta Crônica deixa claro pelo menos para mim,que este Amor ficará dentro deles para o resto de suas Vidas.
Bela Crônica sobre o cotidiano da Vida ou melhor de nossas Vidas.