JULGAMENTOS
2 de agosto, 2021
LEMBRANÇAS DA “DISCO”
4 de setembro, 2021
Mostrar tudo

QUERELLE

Editorial use only. No book cover usage. Mandatory Credit: Photo by Planet-Film/Albatross/Gaumont/Kobal/Shutterstock (5878535f) Brad Davis, Franco Nero Querelle - 1982 Director: Rainer Werner Fassbinder Planet-Film/Albatross/Gaumont Scene Still

Há alguns dias, revi “Querelle”, do diretor alemão Rainer Werner Fassbinder, baseado no livro do francês Jean Genet. Tenho duas histórias engraçadas com o filme, dois momentos bem distintos da minha vida, separados por alguns anos, mas que me vieram à memória quando pus o DVD aqui em casa. Sim, antes que alguém levante as sobrancelhas, eu tenho DVDs, muitos, e prezo cada um como uma relíquia.

“Querelle” é estrelado pelo americano Brad Davis – no papel título – e pelo italiano Franco Nero. Querelle, como bom marinheiro, é um solitário. Moço bonito, faz sucesso entre os homens – o filme é totalmente gay – e atrai a atenção de seu oficial comandante, Seblon (Franco Nero). O oficial deseja Querelle à distância, cobiça o rapaz e quase não se aguenta de desejo.

A história tem início quando o navio atraca no porto de Brest, na França. Querelle também é um traficante de drogas e mata seu parceiro de tráfico. Depois, vai para uma espécie de bordel onde conhece Lysiane (Jeanne Moreau) a qual vai levar o rapaz à sua primeira experiência com um homem. O marido de Lysiane – Nono – costuma fazer uma aposta com os clientes: jogam dados e, se o cliente vencer, tem o direito de se deitar com sua mulher; se perder, Nono fará sexo anal com o cliente. Querelle manipula os dados e tem de se deitar com Nono, sendo penetrado pelo dono do estabelecimento. Não vou contar mais. O filme é uma espécie de teatro filmado, não é para todos os públicos. Muita gente vai considerá-lo chato, parado demais, muito lento. Para mim, ele não é nada disso. A revista Rolling Stone escreveu que “o filme apresenta a história do marinheiro Querelle com um estilo que pode ser mais bem descrito como ‘expressionismo gay’ e uma pitada de Tom of Finland”.

Bem, era o ano de 1983. Eu estava no Exército e, num dos raros domingos de folga, peguei o jornal do meu pai e vi o anúncio do filme na página de cinema. Era um anúncio pequeno, em preto e branco, não muito chamativo, mas era um filme com Franco Nero! Eu era apaixonado pelo homem. Já havia visto outros filmes com ele, porém nunca fazendo um papel de homossexual… e fardado! O fetiche da farda não atinge a todos, mas é um ícone gay, sem dúvida. Lembremos, por exemplo, do vocalista do Village People e das centenas de filmes em que os atores pornôs estão de farda…

Voltando ao caso, quando vi que o filme era com Franco Nero, pensei: “Preciso dar um jeito de ver esse filme de qualquer jeito!”. Eu estava com a semana cheia por causa do quartel e minha única noite “livre” era a segunda-feira, isto é, no dia seguinte. Decidi sair do quartel e ir diretamente ao cinema, na avenida Ipiranga, zona proibida para soldados, segundo haviam nos dito sargentos e cabos.

Saí do quartel em Quitaúna, bairro de Osasco, na região metropolitana de São Paulo, peguei o bendito trem de todos os dias e desci na Estação da Luz. De lá, tomei o metrô e desci na Praça da República. Eram quase 8h da noite. A sessão já ia começar.

Comprei meu bilhete e vi que a “galera” começou a me medir de cima a baixo. Óbvio: eu, jovenzinho, 19 anos, chamava a atenção de todo o mundo. E mais: eu estava fardado. O fetiche! Entrei rapidamente no cinema e me sentei pra ver o filme. Imediatamente, alguém se sentou ao meu lado e pôs sua perna encostada na minha, mas com uma certa relutância, com um certo receio, pude notar. Fiquei nervoso; gostei, mas fiquei nervoso. Inexperiente, mudei de lugar e, enquanto procurava uma cadeira, alguns homens esbarraram em mim no escuro.

Sentei-me e vi o filme sem olhar para os lados. Tudo aquilo estava muito intenso – o beijo gay na tela, Nono comendo Querelle, aqueles homens todos que passavam de um lado para outro, a adrenalina a mil… e o tesão também! Que noite era aquela?

Não tive coragem de fazer nada. Terminado o filme, saí com pressa, pois eu morava muito longe e, no dia seguinte, estaria de pé às 4h da manhã para poder estar “em forma” no quartel às 7h. Eu pegava um ônibus até a Lapa e, lá, pegava o trem cheio de soldados para Quitaúna.

Hoje, é claro que me arrependo de ter saído do cinema com pressa, sem ter aproveitado “tantas ofertas” e “opções” que se apresentavam. Durante muito tempo, aquela noite ficou na minha memória. Eu ainda era um gay que vivia tudo de forma muito, muito platônica, com medo de tudo, com vergonha e medo de ser descoberto “no meu segredo”. É claro que ninguém soube disso, eu não contei a nenhum dos meus amigos… no quartel, muito menos.

Eram mesmo tempos de muito medo, tempos de viver as coisas platonicamente, de desejar sem ter a coragem de experimentar e viver o desejo. Fui um soldado tão bobinho, que me apaixonei por um tenente – onde será que ele está hoje? – platonicamente, é claro! O homem era bonito! Pra se ter uma ideia, seu apelido era “Magnum”, em alusão ao ator Tom Selleck, do seriado de TV. Isso daria outra crônica…

Voltando ao filme, Franco Nero, naquela farda branca e fazendo o papel de um homossexual apaixonado que amava platonicamente também, povoou minha imaginação por muito tempo. E até hoje é um ideal de homem que considero másculo sem ser rude; macho sem ser grotesco. Na verdade, era um personagem que sofria, era infeliz por guardar seu amor por alguém que não o merecia, como Querelle. A paixão está nos olhos do comandante, mas ele sabe que não pode avançar o sinal. Então, vive angustiado.

Nove anos depois, já fora do quartel (graças a Deus!) e já casado com João havia seis anos, resolvi ir ao cinema, pois ele havia viajado a trabalho e o Cine Belas Artes estava exibindo… Querelle! Eu nunca mais havia visto o filme. (Só muito tempo depois é que ele seria lançado em DVD.) Pois bem, decidi que, naquela noite de sábado de 1992, sozinho, eu iria rever Mr. Franco Nero, um dos meus tesões da adolescência.

Lembro que peguei a sessão das 8h de novo, mas, ao contrário de nove anos antes, o cinema estava praticamente vazio. Éramos umas dez pessoas, se tanto. Sentei-me na última fileira, como sempre gostei de fazer. Bem distante da tela. Lembro que comprei um caixa de bombons e fiquei esperando que se apagassem as luzes. Duas velhinhas sentaram-se à minha frente, muito simpáticas, muito bem vestidas, bem elegantes na verdade.

Disseram-me “boa noite”, e eu retribuí. Quando elas se sentaram, uma perguntou à outra:

– Do que fala esse filme que nós vamos ver?

– Eu não sei direito. Só sei que é francês e fala de um marinheiro. Deve ser bom – respondeu a amiga.

Imediatamente, percebi que a coisa não ia terminar bem. Elas não sabiam do que o filme tratava, não haviam lido nada sobre a história e tive vontade de rir. Na verdade, ri sozinho e só fiquei esperando pra ver o que ia acontecer. Podia ser que ambas tivessem uma cabeça mais aberta e até gostassem do filme com tudo o que ele tinha de transgressor. Jean Genet é um autor “maldito”, teve uma vida complicada de crimes e prisões. Guardadas as proporções, faço um paralelo com o nosso Plínio Marcos aqui no Brasil.

As luzes se apagaram, e o filme começou. Eu estava encantado por poder vê-lo de novo, depois de tantos anos. Ainda estavam na minha memória não só aquela noite de 1983, mas os diálogos, as cenas, o olhar do oficial para o marinheiro… Que viagem!

Minha concentração foi interrompida na cena em que Querelle manipula os dados e deixa que Nono o penetre. Nesse momento, as senhoras se levantaram na minha frente, indignadas, reclamando que aquilo era uma pouca vergonha, onde já se viu tamanha sem-vergonhice, que coisa feia! Um horror!

E foram reclamando corredor e porta afora, no escuro mesmo, sem olharem para trás. Fiquei rindo sozinho no escuro, enquanto Nono satisfazia Querelle. De quando em quando, eu me lembrava das velhinhas e ria mais. Ficaram realmente escandalizadas. Pena não ter com quem dividir aquilo, naquele momento.

Quando saí do cinema, fazia uma noite um tanto fria na esquina da Consolação com a Paulista. Eu morava no Paraíso, na outra extremidade da “mais paulista das avenidas” e resolvi seguir a pé sob uma densa garoa. Fui pensando em tanta coisa, exatamente como faço agora.

A arte tem esse poder de nos causar impacto, sem dúvida, mas pensemos em tudo aquilo que está “ao redor” de uma obra: a época em que a conhecemos, o que éramos quando tomamos contato com ela e como ela nos transformou. Naquele sábado de 1992, o homem de 28 anos pensou muito no jovem de 19: aquele mesmo jovem tão tímido que, numa certa noite, chutou o balde e foi fardado para um cinema ver um filme sobre um marinheiro gay. As memórias que a gente carrega…

Franco Nero nasceu em 1941. Iniciou sua carreira em 1962 e está na ativa até hoje. Durante as filmagens de “Camelot”, em 1967, conheceu a atriz Vanessa Redgrave, com quem teve um filho nascido em 1969. Seu mais recente trabalho foi “Rosso Istria”, do diretor Maximiliano Hernando Bruno, em 2018. Ainda é um homem charmoso mesmo com a idade avançada.

Nascido em 1949, Brad Davis era casado e tinha uma filha. Recebeu o diagnóstico de Aids em 1985, mas manteve isso em segredo até pouco antes de sua morte, em 1991, aos 41 anos, pois “queria continuar trabalhando pra sustentar a família”. Segundo jornais da época, não suportando mais as dores em decorrência da doença, quis sair do hospital e voltar para casa, onde, na presença da esposa e de um amigo, cometeu o chamado “suicídio assistido” com uma “overdose intencional”.

Morreu jovem, com uma doença que dizimou milhares de vidas.

 

 

 

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

2 Comments

  1. Clarice keri disse:

    Hummm, Av Ipiranga, zona proibida, você foi corajoso, precisamos rever esse filme q te marcou tanto, adorei o texto, obrigada.

  2. Baltasar Pereira disse:

    Eu assisti o filme “Querelle “já em casa em fita VHS.

    Lembro que fiquei admirado com as cenas que assistia e com a crueza da História muito envolvente.

    Fiquei imaginando o Cronista vendo o filme aos 19 anos ,as sensações e os seus medos dentro do Cinema e após 9 anos quando foi ver novamente no Belas Artes bem mais maduro.

    Imagino o filme que passou em sua mente.

    Filmes existem que realmente nos remetem a momentos de nossas Vidas as quais jamais nos esqueceremos sejam momentos bons ou difíceis.

    Bela Homenagem a este Filme,bem como aos seus Atores Franco Nero e Brad Davis ,este que partiu tão cedo.
    👏👏👏

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *