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RAINHA DE ESPADAS

Cecília acordou com o alarme do celular às 7h. Como dava a primeira aula só às 9h, levantou-se com calma e, enquanto abria as janelas e ia ao banheiro ver a cara de sono no espelho, foi enumerando as tarefas daquele dia – aula na graduação até às 13h; depois, uma banca de defesa de doutoramento às 14h – o que poderia se estender até às 18h – e, finalmente, a volta pra casa com rapidez a fim de preparar o jantar para os amigos que viriam visitá-la às 9h. Dia corrido, dia cheio, dia ensolarado, constatou.

Após tomar seu banho, escolheu um vestido bonito, fresco, leve e colorido, e já podia ouvir as alunas dizendo: “Esse vestido é a sua cara, professora!”, “A senhora está ótima!”, “Gostei das flores no vestido!”. Ela sorriria, meio tímida, mas feliz pelos elogios recebidos. Deixou o cabelo solto, ainda molhado – não quis usar o secador naquela manhã quente – enquanto tomava um iogurte e comia uma fruta. Desde pequena, ela se forçava a comer pela manhã. Jamais gostou de desjejuns muito exagerados. “Coisa de americano”, dizia. “Eu não consigo”.

Voltou ao banheiro no espaçoso apartamento dos Jardins; fez a higiene bucal, escolheu seu perfume preferido, ajeitou novamente o cabelo e olhou o celular. Passou os olhos pelas mensagens e não viu nada que exigisse resposta imediata. Na maioria, eram “bons dias” de amigos e alguns parentes. Duas mensagens de dois orientandos. Nada urgente. Despois responderia. Guardou o aparelho na bolsa, pegou o molho de chaves e olhou as horas mais uma vez. Era cedo, estaria na universidade em 20 minutos, mas resolveu sair logo. Melhor fazer hora na sala dos professores.

Pegou os cinco pacotes de provas já corrigidas que deveria entregar aos alunos naquela manhã. Junto, pôs a tese já lida e com todas as observações e perguntas que faria durante a defesa na parte da tarde. Só esperava que não fosse uma coisa muito cansativa e que terminasse logo. No elevador, encontrou um vizinho gentil o suficiente para segurar-lhe a porta na entrada e na saída – ambos foram para a garagem –, pois ela estava, como sempre, carregada com bolsa, provas e chaves.

No caminho para a universidade, foi pensando em muita coisa, especialmente na consulta que fizera no dia anterior com uma taróloga. Por insistência de uma outra professora do departamento, amiga de longa data (haviam defendido suas teses no mesmo ano), Cecília cedeu e, rindo, finalmente concordou com “aquele negócio de adivinhação”. A amiga havia lhe dito maravilhas da taróloga e do próprio tarô. Com tanta insistência, acabou indo – e as palavras da mulher ainda estavam em sua cabeça.

Entre previsões e orientações, ficou conhecendo o que eram os “arcanos maiores” e os “arcanos menores” e o que eles diziam, dispostos, meticulosamente em cima da toalha de um vermelho lindo sobre a mesa, pela mulher de meia idade. A casa era um sobrado antigo, no bairro da Lapa, perto da estação de trem. Chegaram para a consulta às 6h da tarde. Saíram às 11h da noite. A amiga, exausta, quase pegando no sono no sofá da mulher; e Cecília fascinada com tudo o que ouviu sobre si mesma.

Muita coisa ouvida passava em sua cabeça enquanto dirigia naquela manhã. A frieza de sua mãe, o apego de seu pai, os dois irmãos distantes que ela não encontrava fazia mais de dois anos. O cuidado que ela devia tomar com uma “professora perigosa” do departamento, um outro professor que, havia muito, estava apaixonado por ela (nessa hora, Cecília riu e não conseguiu imaginar quem poderia ser!) e que poderia fazê-la feliz. A mulher passava credibilidade, mostrava-se segura com o que dizia. E era tanta informação! Para o prazer da amiga, não havia dúvidas: Cecília tinha se empolgado com a consulta e tinha adorado a experiência. De alguma forma, estava “mexida” com tudo aquilo.

Uma carta, porém, não saía de sua cabeça. Quando a taróloga virou a carta da Rainha de Espadas, Cecília pôde ver que a mulher mudou de expressão e olhou a professora com muita seriedade. As palavras da mulher foram claras: “Avalie criticamente o ambiente e corte todas as pessoas e situações que não servem mais em sua vida, sobretudo pessoas que você não avalia como construtivas, afinal todas as relações se pautam numa boa troca. É momento de você ser leal a você mesma, de você suportar eventuais sofrimentos sem se deixar abater. Tenha resistência emocional para lidar com algumas situações difíceis. Você é bonita, inteligente, por isso mantenha seu nível de exigência alto, não se contente com pouco. Cuidado com mágoas passadas. Não dê valor a quem já foi”.

Imediatamente, lembrou-se do jantar prometido para aquele dia. Sentiu uma onda de tristeza dentro do peito, uma angústia desnecessária que lhe dava vontade de chorar, ali, ao volante, no meio do trânsito pesado da cidade a caminho do trabalho. Quis ligar o rádio para se distrair, mas a voz irritante do locutor fez com que ela voltasse ao silêncio, o mesmo silêncio que a oprimia de certa forma.

O que estava acontecendo afinal? Não fora ela mesma que convidara o ex-namorado para jantar? Não fora ela mesma que dissera para ele levar o namorado porque queria conhecê-lo? Não fora a própria Cecília que, num ato de extrema doçura, aceitou e reconfortou Murilo quando, depois de cinco anos juntos, ele veio lhe falar que estava apaixonado por um homem? Não fora ela mesma que aceitara quando ele propôs que nunca se perdessem de vista, que nunca sumissem um da vida do outro? E, por fim, não foi ela própria que virou a grande amiga do homem que ela sempre amara?

O jantar estava combinado havia quinze dias, logo depois que Murilo e o outro voltaram da Europa. “Trouxemos um presente pra você, minha querida. Foi o Sérgio que escolheu. Você vai adorar!”. O Sérgio tinha escolhido. Mas o que o tal de Sérgio sabia dela? Nunca haviam se encontrado, nunca haviam conversado nesses três meses em que os dois homens estavam juntos… Ela acabou por convidá-los e viu no convite uma boa oportunidade de conhecer o outro. “Pelo menos, aqui em casa, fico mais à vontade”.

Mas não podia negar que ainda estava muito, muito envolvida com o homem do qual se separara havia tão pouco tempo. Ficou pensando, entre um semáforo e outro, nas palavras da taróloga e nos próprios sentimentos que estava experimentando naquele instante. Uma coisa, realmente, era convidá-los; outra era saber que, no fim daquele mesmo dia, eles estariam em sua casa.

Chegou à universidade, estacionou o carro e, por sorte, um aluno passava e ajudou-a com os pacotes de provas até à sala dos professores. Dispôs tudo em cima da mesa e foi tomar um café. Sentou-se sozinha e ficou pensando, nem ouviu quando a moça da faxina a cumprimentou. Outros professores foram chegando, a sala foi ficando repleta. Logo, a amiga que a levou à taróloga estava sentada ao lado de Cecília. As duas conversaram sobre as atividades daquele dia – ambas professoras de Literatura Portuguesa, ambas apaixonadas pelos escritores do país europeu.

Chegado o horário das aulas, foram todos – professores e professoras – para suas respectivas salas. Durante toda a manhã, Cecília assistiu a seminários preparados pelos alunos, mas sua cabeça estava na taróloga e no jantar, na carta da Rainha de Espadas e em Murilo com seu novo namorado. Ora pensava nas cartas, ora vinha-lhe à memória o dia em que ele resolveu terminar tudo. Um dia horrível! Chorara muito, sem forças para sair da poltrona favorita onde se refugiava com seus livros. A sala à meia-luz, a noite caindo, o silêncio do apartamento, o mundo desabando. Ele, sem dúvida, escolhera uma péssima hora do dia para ter aquela conversa com ela. Os alunos falando, expondo suas reflexões sobre Eça de Queiroz, suas personagens, o enredo, o tema do livro, o contexto histórico. A professora teve vontade de sair da classe. A angústia de novo, a mesma angústia que sentira no carro.

Terminadas as aulas de uma manhã difícil, almoçou na própria universidade. E ainda havia a defesa da tese que possivelmente tomaria a tarde toda! Cecília deixou-se ficar na sala dos professores o quanto pôde. Foi a última a chegar ao local da defesa, embora não estivesse atrasada. Foi a segunda a arguir e suas observações foram brilhantes, como sempre. Para sua surpresa, antes das 5h estava tudo resolvido. Depois dos abraços e dos parabéns à nova doutora e ao seu orientador, Cecília saiu devagar da sala, sentindo-se mais leve pelas provas entregues, pelas aulas dadas e pela arguição competente. Nascera para ser professora, não tinha dúvidas.

Caminhou lentamente até o carro, tinha tempo até a hora do jantar. Chegaria em casa (ingredientes já comprados), tomaria um banho, vestiria uma roupa bem confortável (não deselegante), poria uma música bem agradável e iria à cozinha. Arrumaria a mesa com uma toalha de linho branca; já escolhera os pratos e os talheres. Algo bem informal, mas elegante e delicado – como ela. Foi dirigindo entre os numerosos carros que, àquela hora, lotavam as ruas de São Paulo. Cansada, sentiu um alívio quando conseguiu entrar na rua onde morava. Mais ainda quando a porta da garagem se abriu e ela entrou com o carro.

No elevador, pensou nas aulas do dia seguinte, um dia que seria mais leve, certamente. Subiu os oito andares sozinha, sem interrupção. Abriu a porta do apartamento, dirigiu-se à biblioteca e deixou lá a bolsa. Antes, pegou o celular e checou as mensagens. Umas dez ou doze, que ela não se apressou em responder.

Subitamente, a Rainha de Espadas veio-lhe à mente. Seria ela, Cecília, uma mulher fria e calculista como a rainha da carta? Ou a soberana aparecera para alertar sobre um sentimentalismo exagerado por parte da professora? Eram 6 e meia. Dentro de mais ou menos duas horas, estariam ali, naquele apartamento, dois homens apaixonados – o que ela ainda amava e o outro, que era amado por ele. Coisa de fotonovela! Quem se lembrava delas? Mágoa, ressentimento, tristeza, baixa autoestima… por que tinha que mascarar tudo isso diante de seus convidados? E quem a obrigava a vivenciar aquela situação dentro de sua própria casa?

– Você precisa aprender a se proteger, Cecília… se resguardar um pouco, conter suas emoções para não se fragilizar tanto. Isso com alunos, amigos, chefes e, principalmente, com o homem que você (ainda) ama – as palavras do pai eram sábias. Sempre tinham sido e sempre seriam enquanto ele vivesse. E vinham sempre com carinho, ternura, querendo o melhor para a filha.

Uma rainha má? Tudo bem: uma rainha má! Mas, no seu castelo, ela, Cecília, devia ser soberana. Sentiu-se humilhada pelas visitas que nem haviam chegado ainda. Aquilo seria uma invasão, um desrespeito, um pouco caso com seu sofrimento. Ver os dois de mãos dadas na sua sala; Murilo fazendo o prato do outro; os dois com olhares cúmplices falando da viagem que tinham acabado de fazer! E ela ali, muda, ouvindo, solitária e forte como sempre (não queria ser forte – queria ter fragilidades como todo o mundo!), sem demonstrar ciúme ou tristeza, sorrindo sempre, a perfeita anfitriã. A garganta seca, o suor na testa, o constrangimento, a humilhação.

Pôde imaginar Murilo, no elevador, depois do jantar, dizendo ao outro: “Ela não é o máximo? Minha melhor amiga. Eu sabia que ela gostaria de você…”. Sim, certamente, era isso que aconteceria. Passou as mãos pelo rosto, cansada, muito cansada. A toalha vermelha da mesa da taróloga, as cartas dispostas do bonito tarô, a amiga dormindo no sofá, a noite caindo…

Cecília levantou-se da poltrona favorita, sua poltrona de leitura, e pegou o celular. Procurou o número desejado e ligou – uma mensagem de Whatsapp seria descortês, pensou.

Quando atenderam, ela foi direta:

– Alô, Murilo? Tudo bem? Boa noite! Tudo, tudo bem… Será que podemos deixar nosso jantar para outro dia? Estou presa aqui na universidade… é… reunião de última hora no departamento… pois é… desculpe. Peça desculpas ao Sérgio, por favor. Vamos ver outro dia. Vocês se importam? Ah, que bom! Eu ligo pra você. Tá, tá legal! Um beijo.

Repousou o aparelho sobre a escrivaninha. Estava com uma sensação de alívio, que não teria sabido explicar. Foi ao quarto, despiu-se lentamente e resolveu fazer algo que havia muito não fazia: um banho na antiga banheira! Quando ficou cheia, Cecília jogou seus sais de banho na água. O perfume invadiu o banheiro. A professora pegou uma taça de vinho e mergulhou seu corpo, deixando apenas a cabeça de fora. A taça repousando na borda, o vinho sendo sorvido aos poucos, o prazer em cada gole, a água perfumada. Vontade de dormir ali mesmo!

Por um momento, quis voltar a ser a velha Cecília e sentir-se culpada por ter mentido e por ter cancelado o jantar prometido. Pensou na taróloga, pensou nas cartas.

A professora percebeu, então, que só seria amada quando se amasse e se respeitasse.

Na água quente e relaxante, deixou-se envolver pela espuma branca e perfumada, enquanto pensava nos conselhos da poderosa Rainha de Espadas.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

2 Comments

  1. Baltasar Pereira disse:

    Muito instigante a Crônica. Eu ficava imaginando a ansiedade da Professora Universitária e a tensão crescente se iria ou não fazer o jantar para seu Ex-Namorado com o namorado dele.
    Realmente uma situação muito tensa quando ainda se gosta e muito do Ex namorado.
    Fiquei também imaginando ela e sua Amiga na Casa da Taróloga.
    Conseguiu me deixar ansioso , como em um Filme com o que iria ocorrer.
    Bela Crônica
    👏👏👏

  2. Clarice keri disse:

    Ótima crônica, personagem forte e interessante, daqueles que dá vontade de saber mais, de ir além, obrigada.

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