A escola é pública, as crianças são pobres e o bairro é miserável. O professor é um novato. Ainda não terminou a faculdade de Educação, mas já está na sala de aula, porque precisa ganhar dinheiro e pagar suas contas. Ele é um substituto da professora que pediu demissão.
Seu primeiro dia de aula. O diretor mal lhe olha nos olhos. Ocupado com relatórios e requerimentos da Secretaria da Educação, dá as boas-vindas ao jovem e lhe diz que “o Brasil precisa de educação pra ser um país grande”. Deseja-lhe sorte com aqueles “meninos e meninas carentes de tudo”. O jovem professor sorri, está animado, quer fazer alguma coisa por aqueles alunos e alunas. O diretor não lhe dá mais atenção. O professor pede licença e se junta aos outros que trabalham ali há vários anos.
Duas professoras conversam e cochicham sobre o novato. Bonitinho, nunca o viram por aquelas bandas. Será casado? Quantos anos? Ah, 23, no máximo! Gostaram de sua calça jeans e a camiseta com a estampa de Chaplin. Sinal de que gosta de cinema e de que guarda uma certa esperança no coração. As duas concordam.
Ele se senta num canto depois de cumprimentar a todos. Abre a bolsa de couro cru e retira um livro e um lanche. Vai ler e comer até que bata o sinal e ele se dirija para sala de aula. Já sabe que será responsável por 37 alunos, entre meninas e meninas. Ele come e lê. O sinal soa. Ele joga o papel do lanche no lixo e guarda o livro. Não deu para ver a capa, nem o título.
A escola é velha. “Abandonada” seria o melhor adjetivo. Paredes pichadas, infiltração no teto, lousas depredadas, carteiras que balançam enquanto os pequenos escrevem. A mesa do professor é velha também, mas de boas dimensões. Uma das professoras que o observavam caminha ao seu lado pelo corredor. Puxa um papo com o novo bonitinho até chegarem às respectivas salas. A dela, do segundo ano, é ao lado da dele, do primeiro. Descobrem que tomam o mesmo ônibus para voltarem pra casa. Combinam de irem embora juntos. Despedem-se com um sorriso e prometem conversar depois.
O jovem professor entra na sala. A molecadinha não faz silêncio. Estão conversando com seus vizinhos de carteira. Alguns estão de pé; risadas, gritos, brincadeiras, uma aluna que, timidamente, escreve seu nome com o giz na lousa; uma outra que aponta o lápis perto da lixeira; dois meninos que chutam uma bola de papel; outros que desenham; um outro que olha pela janela o mundo lá fora…
O jovem professor toma o seu lugar e pede silêncio. Bate na mesa com a mão espalmada e consegue a atenção dos alunos. Ele os olha com atenção, sério, procurando impor respeito antes de procurar conhecer um a um. Põe seu nome na lousa para que todos o vejam. Pega o diário de classe e diz que vai fazer a chamada. Quer que cada um levante a mão para o professor ver seu rosto. Os meninos vêm primeiro; “machismo”, pensa. Alberto: presente; Álvaro: presente; André: presente; António Carlos: presente; António Cícero: presente; António Pedro: presente; Arthur: presente; Átila: presente…
O professor vai olhando o diário e o rosto de quem responde à chamada. Depois de terminado o ritual, ele se levanta e caminha pela sala. Diz que gosta de silêncio e que tem muita coisa bacana para ensinar para aqueles alunos. Vai começar lhes contando uma história e, depois, vai escrever na lousa as palavras que os meninas e meninas não conhecerem. Ele conta a história e não é interrompido. As crianças parecem hipnotizadas. A primeira parte da aula se vai. Toca o sinal do intervalo – no seu tempo, chamava-se “recreio”. Enfim…
As crianças saem em disparada. A escola fornece merenda. Àquela hora, estão com fome. Fica sabendo, na sala dos professores, que muitos daqueles alunos vão fazer a primeira refeição do dia naquele momento. Não devem ter o que comer em casa. Vêm para a escola mais a fim de matar a fome do que de aprender. Dureza. Ele se sente mal com a informação: uma coisa é ler sobre isso nos jornais e na internet; outra é conviver com essa realidade ao vivo e em cores…
Bate o sinal. Todos de volta à aula. Ele deixa os alunos fazerem perguntas sobre a história que contou. À medida que levantam a mãozinha, ele pergunta o nome e deixa a criança perguntar. Vai respondendo com calma e doçura. De alguma forma, já não é o mesmo de antes do intervalo. Pensar que muitas daquelas crianças estavam com fome até o intervalo perturbou o jovem professor. Procura tirar aquilo da cabeça.
Um dos meninos levanta a mãozinha. O professor pergunta o seu nome. “Arthur, professor, como o rei da Inglaterra”. Todos riem. O menino fica envergonhado. É sempre assim – ele repete o que lhe falaram em casa: os amigos não se aguentam e riem muito. Arthur fica vermelho, constrangido, não sabe onde enfiar a cara. O professor olha pra ele e repreende a classe. Que deixem o colega falar.
Enquanto Arthur faz sua pergunta, o professor lhe nota o pequeno tênis furado na ponta – dedinho, sem meia, saindo pelo buraco dianteiro. Sua blusinha é velha naquele dia frio de agosto. O menino tem apenas uma camiseta por baixo. Sua bermuda não esconde as pernas meio roxas de frio, mas o garoto não se queixa.
Muitas perguntas depois, a aula termina. No caminho até o ponto de ônibus, o professor novato e a professora também jovem vão conversando. Moram em bairros vizinhos, mas não muito próximos. Ela pergunta como foi o primeiro dia com a classe etc. Ele diz que tudo bem, esconde um pouco o mal-estar com a história da merenda e da fome dos alunos. Ela ousa um pouco e quer saber da vida dele – casado, tem filhos, quantos?
Ele sorri e diz que tem um companheiro. Moram juntos. Faz três anos. O outro é fisioterapeuta. Dois anos mais velho. Ela dá um sorriso amarelo. Não sabe se conseguiu esconder a decepção. Já está perto do ponto onde tem que descer. Despede-se do colega e dá um “até amanhã”.
No dia seguinte, tudo igual. Na sala dos professores, contudo, nota que sua vizinha de bairro mal lhe dirige a palavra. Respondeu ao “bom dia” secamente. Sentou-se ao lado da outra professora e começaram a conversar baixinho. Ele come uma pera e vai ao banheiro escovar os dentes. Toca o sinal e todos vão para suas salas. A professora não o acompanha como no dia anterior, embora deem aulas em salas vizinhas, como já se viu.
Faz mais frio hoje. Alunos encolhidos, vento gelado pelos corredores da escola. O professor manda fechar as janelas e vê que o Arthur está sem blusa. Quando o professor quer saber, o garotinho responde que a mãe botou pra lavar e não secou. Ele está só com uma camiseta de manga comprida bastante puída. Alguém da classe grita: “Lavaram o manto do rei, professor”. Risada geral de novo. De novo, o menino vexado, encolhido de frio e de vergonha.
O professor pega seu casaco do encosto da cadeira onde o havia deixado e joga sobre os ombros da criança. Mais: pega também seu cachecol e oferece ao garoto. Silêncio na sala. E o rapazinho todo feliz porque está agasalhado e com a blusa e o cachecol do professor! Morram de inveja!
No intervalo, no pátio, todos comentam o fato. Arthur ficou na classe, está muito frio e ele não vai sair com o casaco muito maior do que ele. Fica quietinho. A fome aperta, mas ele resiste. Quando o recreio termina, todos voltam e o professor vê que Arthur não saiu para comer. O professor abre sua bolsa de couro cru e encontra uma maçã. Dá para o garoto e lhe diz que ele pode comer. Não tem problema.
O restante da classe olha com estranheza. Não são meninos e meninas acostumados àquilo.
Terminada a aula, Arthur quer devolver as coisas do professor. Este diz que ele pode devolver no dia seguinte. O menino agradece timidamente e vai embora.
Na manhã seguinte, o professor, assim que chega à escola, é chamado à sala do diretor. Ele é um homem de seus 70 anos. Quando o jovem mestre entra em sua sala, o outro levanta os olhos da carta que está escrevendo e diz secamente:
– Nunca mais faça com aluno nenhum o que você fez ontem. Não importa se estão com fome, com frio, com calor, com febre, com malária, com tifo ou o raio que o parta. Fique longe desses meninos. Limite-se à sua aula ou eu chamo a polícia. Conheço gente como você de longe. Só não o despacho daqui porque estou sem professor para o seu lugar. Cuidado comigo!
O rapaz sai sem entender muito bem a conversa. Só começa a compreender um pouco melhor quando, ao passar no corredor pela colega de trabalho, sua vizinha de bairro, ela evita olhar nos olhos do jovem professor.
Na sala de aula, Arthur espera o mestre para, dignamente, devolver-lhe o casaco e o cachecol.
5 Comments
Mestres e Mestres! Meu maior respeito para essa classe que nos deixa um legado, o aprendizado. Sempre haverá um que torcerá contra, sempre haverá um que dificilmente entenderá a relação professor e aluno, no caso esse diretor rabugento. Com essa Crônica voltei aos meus tempos de primário! Obrigado professor.
Olá Prof Vitor
Bela crônica. Real, viva, instrutiva e doce.
E traz embutidas a ignorância e o preconceito eternos.
Parabéns
Quem começou a carreira de professor em uma escola pública enfrentou problemas semelhantes relatados nessa excelente crônica. Acho que nesse difícil começo de carreira tínhamos a vontade de resolver todos problemas de aprendizagem, mas essas carências nutricionais e afetivas ultrapassam os muros de uma escola pública. Um show de crônica, Vitão! Parabéns e um forte abraço. Bob
Difícl ler até o final com os olhos secos.
Da constatação da miséria dos alunos até o desfecho brutal, é como se estivéssemos sendo esbofeteados pela indiferença e pelo preconceito de uma sociedade que é muito bonita no discurso e, muitas vezes, odiosa na prática.
Difícl ler até o final com os olhos secos.
Da constatação da miséria dos alunos até o desfecho brutal, é como se estivéssemos sendo esbofeteados pela indiferença e pelo preconceito de uma sociedade que é muito bonita no discurso e, muitas vezes, odiosa na prática.