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SAINDO DO ARMÁRIO

A história da composição e da gravação de uma música é, às vezes, tão ou mais interessante do que a própria canção. São muitos os casos relatados pelas revistas especializadas e pelos próprios artistas; casos que tornam determinado sucesso ainda mais curioso.

Diana Ross despontou para o estrelato na década de 60, quando fazia parte do grupo feminino “The Supremes”, um dos muitos que contribuíram para a trilha sonora daquela década, como “The Ronettes”, “The Chiffons”, “The Shirelles” e “The Marvelettes”, entre vários outros.

Já no começo da década de 70, a cantora, sempre muito elegante, gravaria um excelente disco com outro grande astro da música negra, Marvin Gaye. Marvin ficou marcado não só pelo talento – um dos maiores nomes da Motown, gravadora de Detroit, especializada em “Soul” e em “Rhythm and Blues” –, mas também por ter sido assassinado pelo pai um dia antes de completar 45 anos, em 1984.

Bem, mesmo sem a mesma potência vocal de outras grandes cantoras negras americanas, Diana Ross sempre foi uma intérprete de muito sucesso. Seus “hits” são numerosos: vão de “Baby Love” (com as “Supremes”) até a regravação um tanto desnecessária de “I will survive”, passando por “It´s my turn”, “Do you know where you are going to”, “Missing you”, “Endless love” (com Lionel Richie) e os maravilhosos duetos com Marvin Gaye “You are everything”, “Stop, look and listen (to your heart)”, “Pledging my love” e “My mistake”. Quem viveu aqueles dias sabe do que eu estou falando!

Mas foi na década seguinte, precisamente em 1980, que a mulher protagonizou uma história engraçada.

Os grandes cérebros por trás da banda Chic – Nile Rodgers e Bernard Edwards – compuseram e produziram a canção disco “I´m coming out” (“Estou saindo”, ao pé da letra) e Diana gravou a música. De acordo com os dois compositores, Diana não fazia ideia de que a música se referia ao universo LGBTQ+ quando a gravou: “Ela não entendeu que era uma coisa bem gay, que era uma pessoa dizendo ‘Estou saindo do armário’. Ela nem desconfiou disso”, declarou Rodgers, rindo, ao The New York Post.

Ainda assim, Diana gostou da letra e gravou a música, que se tornou um sucesso. Para horror da cantora, o DJ Frankie Crocker, de Nova York, brincou que o hino gay era, na verdade, uma declaração de que a própria Diana estava se assumindo publicamente. Segundo a revista Queerty, Diana procurou Rodgers, chorando, acusando-o de arruinar a sua carreira.

Rodgers não conseguiu segurar a risada, mas tratou de acalmá-la e tentou explicar o impacto que a canção havia causado: “Diana, esta música vai ser a sua oportunidade de assumir para o público a rainha negra que você é pra gente. Eu até compus um trecho com uma fanfarra para lembrar como as autoridades são recebidas”.

Parece que Diana aceitou a explicação e ficou mais aliviada. E a música virou, mesmo, um hino da moçada mais fervida da época. Também, com essa letra, não podia dar outra coisa: “Estou saindo / Quero que o mundo saiba / Tenho que mostrar / Há um novo eu saindo (…) / Acho que desta vez vou fazer isso (…)”.

Lembro da primeira vez em que ouvi essa música: eu estava na casa de duas amigas, e uma delas havia comprado o compacto, pois era muito tocada no rádio. Achei gostosa, mas com 16 anos eu não manjava quase nada de inglês e nem me liguei que “pudesse ser um hino dos homossexuais”.

Da mesma forma, várias músicas e grupos daquela época caíram de paraquedas por aqui, sem que entendêssemos qualquer mensagem gay que pudesse haver. O caso mais emblemático, acho, foi o fato de ninguém ter se tocado de que o Village People – cantando “Macho Man” – era gay até a raiz do cabelo.

Eram outros tempos. O povo dançava e não se importava com o que a música dizia; não havia internet, e histórias como essas de “I´m coming out” nem chegavam até aqui – às vezes, nem eram divulgadas por lá.

Só muito mais tarde, por exemplo, é que ficamos sabendo da verdadeira razão de Rodgers e Edwards terem composto outro grande sucesso do Chic e da Disco Music, “Le Freak”:  na véspera do Ano Novo de 1977, os dois eram convidados de Grace Jones para a festa no famoso Studio 54, em Nova York. Grace, contudo, parece que se esqueceu de incluir os nomes de Nile e Bernard na lista de convidados. Assim, os dois foram barrados na porta da boate e não conseguiram entrar. Chateados e com muita raiva, foram, debaixo de neve, para o apartamento de Edwards onde compuseram “Fuck off” (algo como “Foda-se”). Obviamente, perceberam que, com esse título, a composição não seria tocada em rádio alguma do mundo. Assim, com ajustes no nome e na letra, nasceu o refrão “Freak out!”, que pode ser traduzido por “Enlouqueça!”. Bem mais a cara da Disco, vamos admitir.

Voltando a “I´m coming out”, segundo a revista Queerty, Rodgers revelou que teve a ideia de compor a música enquanto perambulava pelo Barnum Room, uma boate de Manhathan. Depois de ver drags fazendo shows caracterizadas de Diana Ross, ele chamou Edwards para comporem a letra que faria sucesso com a ex-vocalista das Supremes – mas, pelo jeito, não contaram isso pra mulher, que quase infartou.

Uma canção nunca é só aquilo que está gravado.

 

Abaixo, os links dos vídeos:

https://www.youtube.com/watch?v=F-mjl63e0ms

https://www.youtube.com/watch?v=aXgSHL7efKg

 

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

2 Comments

  1. Quando li “SAINDO DO ARMÁRIO”, pensei outra coisa, como falamos, “viajei na maionese”, mente podre a minha. rs
    O texto é de uma clareza fantástica, eu ficaria horas e horas tecendo comentários, sou fã de carteirinha do grupo CHIC, seria “suspeito” em grafar algo. Nile Rodgers, Bernard Edwards, Alfa Anderson, Sylver Logan Sharp, Norma Jean Wright, Luci Martin, Fonzi Thorton, e tantos outros que passaram pelo grupo possuem uma história fantástica no mundo musical, tanto na formação do CHIC quanto em carreira solo. Professor, que delícia isso tudo, o texto foi para mim.

  2. Clarice keri disse:

    Você têm razão, nada é “só aquilo que vemos”, e jamais saberemos todos os significados, então ouçamos com o coração, obrigada.

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