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SEGREDO DE VIDA INTEIRA

Quando o seu Artur completou 85 anos, o ortopedista disse que não havia jeito: a família tinha que contratar um fisioterapeuta para fazer com que ele se exercitasse e, sobretudo, para fazer-lhe um pouco de companhia.  Em particular, o médico confidenciou ao filho mais velho que seu Artur estava muito triste, certamente por causa da idade, e seria muito bom pra ele ter com quem conversar, já que a esposa, dona Silvia, não parava em casa – vivia às voltas com obras assistenciais da igreja.

Os quatro filhos e sete netos não conseguiram esconder seu riso quando a moça chegou – e dona Sílvia também não conseguiu esconder seu ciúme. A fisioterapeuta era uma garota loira, 1,78m, olhos azuis, 25 anos, simpática e bem falante. Cativou a todos, menos, obviamente, a dona Sílvia. Essa fez um muxoxo e disse para uma das noras que seu Artur só ia jogar dinheiro fora com esse negócio de fisioterapeuta. Onde já se viu, nessa idade, com tais assanhamentos?

A moça confirmou a primeira impressão causada na família – simpática e, mais do que isso, profundamente competente no seu ofício. Chegava todos os dias ao imenso apartamento da avenida Higienópolis pontualmente às 9h da manhã. Tinha tempo de se sentar com seu Arthur à mesa do café e ainda tomar um gostoso suco de laranja que a empregada fazia para a moça. Dona Sílvia normalmente saía antes disso. Os netos, esses nunca visitaram tanto o avô como começaram a fazer. Era um entra e sai depois da escola, principalmente o André, de 18 anos, e o Luís Carlos, de 16. Esses não conseguiam esconder o fascínio que sentiam pela moça.

Os porteiros só falavam da moça que “trabalhava para o senhor do 405”; os faxineiros a olhavam hipnotizados. Ela era a nova sensação do condomínio.

Lígia – esse era o seu nome – mantinha-se discreta e bastante compenetrada em suas funções na casa. Se percebeu o alvoroço dos meninos e o ciúme de dona Sílvia, não demonstrou. E era sempre solícita com a esposa de seu paciente.

Com o passar do tempo, seu Artur resolveu contratá-la por tempo integral – das 9h às 17h -, e Lígia começou a ser tratada como membro da família. Seu ritual era obedecido à risca: chegava às 9h, sentava-se à mesa e tomava seu suco, enquanto seu paciente lia um pouco de jornal na imensa sala iluminada pelo sol. Fazia alguns exercícios físicos com ele e desciam para o Parque Buenos Aires, onde andavam durante uma hora e meia, muito devagar, até perto do meio-dia. Depois, subiam para o apartamento dele, seu Artur tomava um banho, dona Sílvia chegava e os três iam almoçar. Mais tarde, seu Artur e a moça sentavam-se na ampla sala do apartamento de 300 metros quadrados e ficavam conversando, vendo um filme ou lendo. Apreciavam muito a companhia um do outro. No fim da tarde, a moça partia deixando seu cliente aos cuidados da esposa e da empregada.

Seu Artur completara 85 anos no último mês de novembro. Deixara a empresa que fundara com um sócio – já falecido – para os quatro filhos, mas trabalhara até os 80… “trabalhara” é o modo de dizer: com essa idade, passava na empresa todos os dias para ver como iam os negócios, mas eram os filhos quem mandavam e desmandavam em tudo. Até que seu Artur, para espanto de todos, foi perdendo a vontade de vestir terno e gravata todos os dias; cansou de descer até a portaria do prédio onde o motorista já o esperava com o carro pronto para enfrentar o trânsito da cidade etc. Não via muito sentido em ir à empresa onde sua presença não era mais importante. Seu Artur foi cansando – e o corpo, já muito idoso, precisou de uma nova rotina.

Os filhos pensaram no pior: desistindo do “trabalho”, seu Artur poderia estar desistindo da própria vida, chegando ao fim da linha de maneira melancólica porém previsível.

No seu íntimo, contudo, estava tranquilo – os filhos formados e tocando os negócios, famílias constituídas, um patrimônio sólido… ele tinha mais era que sossegar um pouco. Sua saúde estava bem, mas o físico é que requeria cuidados como alimentação sadia e exercícios ao ar livre. Morar perto do Parque Buenos Aires foi providencial para seu Artur. E Lígia era um anjo enviado para lhe alegrar um pouco.

Ele e Lígia conversavam sobre tudo. Cinema, futebol, carros, novelas, política, educação… a moça era inteligente, bem informada e companhia ideal para um homem cuja solidão era nítida, embora a família fosse numerosa. Da solidão, vinha a melancolia. E um laço muito forte foi se formando entre ele e a moça, embora seu Artur fosse uma pessoa muito reservada. Lígia gostava tanto dele que, numa tarde de domingo, de folga, deu uma passada no apartamento para apresentar-lhe o noivo com quem pretendia se casar no ano seguinte. Foi uma reunião agradável, ainda que o ciúme de dona Sílvia continuasse queimando a mulher por dentro.

Entre os filhos, noras e netos, os comentários se dividiam e a maioria achava que seu Artur era mesmo um assanhado. Depois de velho, esticando o olho para uma moça de 25 anos… e dentro de casa, “debaixo do nariz da vovó”. Dona Sílvia, contudo, jamais de opôs ao tratamento do marido e, se fazia comentários desairosos, eram sempre para a empregada que trabalhava com eles havia muitos anos. Esta, a empregada, achava a patroa ranzinza e ciumenta sem razão – ela também gostava de Lígia, principalmente porque a moça distraía o velho e ele não atrapalhava a limpeza do enorme apartamento.

Seu Artur, todavia, às vezes ficava com o olhar distante, pensativo, geralmente curvado sobre o parapeito da grande janela que dava para a tradicional avenida do bairro. Ali ficava um tempo até que fosse a hora de ele e Lígia descerem para o parque.

Um dia, a empregada observou para Lígia:

– Ele adora ficar nessa janela pela manhã observando o movimento do bairro. Seu Artur e dona Sílvia moram aqui há mais de 40 anos…

Lígia a tudo observava, embora fosse discreta e elegante. Ela também tinha seus pensamentos. Seria possível que dois seres se conhecessem bem com pouco tempo de convivência? E quanto tempo seria necessário para que se compreendesse alguém sem a necessidade das palavras, bastando o olhar e os gestos? Lígia parecia compreender seu Artur melhor que dona Sílvia depois de tantos anos de casamento. Desde quando conviver significava conhecer? Se assim fosse, as almas não trariam segredos que temem revelar até mesmo diante do espelho. Tais eram os pensamentos que ela formulava enquanto tomava seu suco de laranja gelado e observava seu relógio no telefone celular.

Sempre vestida de branco, unhas e cabelos impecáveis, Lígia era atraente para qualquer homem de qualquer idade. Impossível não notar sua presença. Ela era, definitivamente, importante para seu Artur em muitos sentidos.

Os dias foram passando e a moça completou dois anos de trabalho com o velho, frequentando aquela casa naquela mesma rotina, de segunda a sexta-feira. Já trocavam mensagens por whatsapp, eram mais do que fisioterapeuta e paciente. Um laço forte unia os dois, para risos e comentários dos netos. Alguns apostavam que seu Artur estivesse apaixonado por Lígia; outros, diziam que alguma coisa “rolava” entre o velho e a moça; os mais imaginativos tinham certeza de que o “vovô não perdia tempo”. Tudo isso, claro, quando dona Sílvia não estava presente.

E seu Artur sentia-se bem com aquela moça ao seu lado. Alguns amigos de longa data o chamavam de sortudo, mas ele não se dava o trabalho de explicar que ela era séria, muito competente e uma companhia agradável. Jamais os convenceria de que era só isso. Deixava que pensassem o que quisessem…

Foi no mês de dezembro, faltando alguns dias para o Natal, que Lígia surpreendeu seu Artur. O dia estava quente, já era verão, e o sol batia na janela com força e luminosidade. Enquanto tomava seu suco de laranja bem gelado na copa, notou pela porta que a cortina da sala estava fechada. O velho lia uma revista em sua poltrona enquanto esperava pela moça pacientemente. Uma cena como tantas outras em tantos outros dias naqueles dois anos…

Ela foi até a janela e abriu as cortinas. Olhou para o movimento da avenida por alguns instantes, viu a agitação do bairro àquela hora e aproximou-se de seu Artur. Ajoelhou-se perto da poltrona dele e sussurrou para que a empregada não a ouvisse da cozinha:

– O senhor não vai dar uma olhada na janela? O rapaz bonitão sem camisa vai passar daqui a pouco. Se perder, só amanhã… Seu Artur baixou o jornal e olhou para os olhos da moça. Nesse momento, ela viu a tristeza estampada no rosto do velho. Tristeza de vida inteira.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

2 Comments

  1. Joao P. disse:

    Que reviravolta! Final surpreendente! O autor aborda o olhar preconceituoso da sociedade brilhantemente.

  2. marco antonio goncalves disse:

    excelente meu amigo.

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