O PRECONCEITO EM “O MERCADOR DE VENEZA”
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TALVEZ…

       – Xiiiii… nossos signos não combinam. Você é da terra, eu sou do ar. A gente não combina!

       O rapaz dá a sentença e ri, depois de eu o pegar olhando pra mim várias vezes, no meio da gente que dançava e bebia naquela festa para a qual eu fui convidado pela minha cliente. Eu havia acabado de reformar o apartamento dela e, lógico, a moça achou de bom tom convidar o arquiteto “responsável por essa beleza” para a recepção que daria “a alguns poucos amigos”. Exagerada como sempre, havia mais de 30 pessoas no apartamento de 500 metros quadrados que eu havia levado uns dois meses para reformar.

       Quando cheguei, por volta das 22h, fui surpreendido com tanta gente interessada em me conhecer e conhecer meu trabalho etc. Essa badalação toda é o outro lado da minha profissão, lado que sinceramente não curto muito. Enfim, preciso “fazer o social”, como dizem. Quem sabe novos clientes surjam depois desta noite! Quem não é visto não é lembrado.

       O rapaz é bonito e simpático. Cabelo penteado para trás, com gel, barba bem aparada e cheia, corpo esguio, braços fortes, olhos verdes, camisa branca, calças jeans, tênis brancos, uma blusa verde (pra combinar com os olhos?) que ele largou em algum canto da sala. Ele se aproxima e pergunta se pode me servir mais vinho ou champanhe ou refrigerante ou água… o que for. Vejo nisso um pretexto claro para falar comigo. Eu sorrio pra ele, embora não saiba o que um moço tão bonito e tão novo possa ver num arquiteto de 58 anos.

       Há tempos que não me iludo muito com flertes e paqueras em festas ou boates. Não que não goste disso, mas ficar deslumbrado e iludido já não faz parte de mim. Claro que, quando o rapaz se afastou para pegar mais bebida, eu examinei seu corpo de cima a baixo – calça justa, coxas grossas, um volume na parte da frente que chamou minha atenção. Sua aproximação será fruto de alguma dica da dona da casa ou ele “me encontrou” no meio da multidão que fala, bebe e dança?

       Quando volta com as taças cheias, pergunta meu signo e, sorrindo, faz a previsão astrológica – nós não combinamos! Eu sorrio, pergunto se ele estuda Astrologia, se manja do assunto, o que tem a dizer sobre meu horóscopo. Não entendo nada disso, nunca me interessei muito. O máximo que fiz foi visitar uma cartomante, uma vez, há muito tempo, levado por uma amiga da faculdade. “Você vai ver como ela é sensacional! As cartas vão mudar a sua vida!”. Não mudaram, mas não culpei a cartomante. Minha amiga é que era exagerada. Foi, contudo, divertido. A mulher me fez lembrar de um ótimo conto de Machado de Assis que eu havia lido no colégio e que havia me marcado bastante.

       Digo ao rapaz que não manjo nada de signos, astros e previsões. Ele sorri, bebe um pouco e me diz que acha tudo isso muito legal.

       – Não foi Shakespeare quem disse que havia muitas coisas entre o céu e a Terra que a gente não sabia?

       Foi! E Machado cita exatamente essa passagem no começo do conto “A Cartomante”. Acho engraçada a coincidência, mas não digo nada. O rapaz está bem próximo de mim, sinto vontade de beijá-lo, acho que é o efeito de duas taças de champanhe. Normalmente, sou contido, discreto, prefiro não ser notado, principalmente em um ambiente onde não conheço as pessoas.

       Do meu jeito, fico olhando esse moço tão bonito, tão simpático e tão cheio de vida. Não há um detalhe sobre ele que me passe despercebido. E isso significa que ele definitivamente conseguiu a minha atenção. Ele é charmoso, tem um sorriso doce, largo, encantador. O que faz pra viver? Administra uma das lojas de tecido da família.

       Entre um gole e outro, ele me dá uma aula de Astrologia, mas sem ser chato ou enfadonho. Rimos juntos – ele, por causa dos defeitos do meu signo; eu, por causa do álcool e porque estou feliz de estar conversando com ele. De algum modo, ele faz minha noite mais leve. Nesta festa, são muitas pessoas que não conheço e que provavelmente nunca mais verei, sem contar os anfitriões. São muito ricos. Ela, sempre simpática, adorou meu trabalho; o marido é bonitão, mas desprovido de encanto. Foi cortês comigo, educado, porém distante. Provavelmente, não sabe lidar com minha homossexualidade. Posso estar errado…

       Arranjamos, o moço e eu, dois lugares em um dos grandes sofás brancos da sala. Sentamos lado a lado e nossa conversa ainda é trivial, assuntos corriqueiros – filmes, viagens, comida. Eu me sinto leve, aceito mais uma taça de champanhe, sinto que ele poderia me levar para onde quisesse. O álcool sobe, perco um pouco a noção do espaço, mas a voz dele é gostosa, me faz bem. Sempre fui fraco pra bebida. Vou pensando em tanta coisa…

       Talvez ele seja uma companhia para quando eu tiver que sair desta festa, na noite fria, em direção ao meu apartamento. Talvez minha noite não termine da mesma forma que todas as outras – uma música na sala, um copo de whisky e meu gato passando por entre minhas pernas até que eu o pegue nos meus braços, e eu olhando para o nada.

       Talvez ele seja o motivo que os astros reservaram para mim quando me decidi vir a esta festa, meio contra minha vontade. Talvez, por obra das estrelas, nossos destinos devessem se cruzar.

       Talvez ele seja um moço bom além de inteligente. Talvez ele seja um rapaz com mais conteúdo do que eu possa ver enquanto tomo minha quarta taça de champanhe. Penso na possibilidade de conhecê-lo melhor, longe daqui e depois que o efeito do álcool tiver passado.

       Talvez ele possa ser o homem que eu deva deixar se aproximar de mim depois de um longo período de luto e tristeza – como lidar com a perda de alguém que tirou a própria vida?

       Fico pensando, enquanto o moço fala e gesticula, que ele tem uma boca linda e sua conversa é envolvente, assim como deve ser envolvente a maciez de seu corpo e a força de seu peito sob a camisa branca.

       Com o pouco de sobriedade que ainda me resta, penso que talvez possamos caminhar um pouco pela rua deserta, conversando ou em silêncio… não importa: de um jeito ou de outro, ele aliviaria minha solidão.

       Enquanto penso tudo isso, levanto uma hipótese e torço para que ela esteja certa: talvez nossos signos não sejam tão incompatíveis assim…

                             

      

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

5 Comments

  1. Aurélio disse:

    De “talvez” em “talvez”, o narrador , nessa sequência de dúvidas, reflexões, deixa entrever um homem profundamente abalado por um luto de há muito.

    Mais uma vez, o cronista baliza uma situação dolorida – o luto e como lidamos com ele – entre conversas triviais para nos remeter à ideia de que as aparências podem enganar: a discrição do arquiteto, o sorriso e a bebida mascaram (ou revelam) a angústia e o sofrimento provocados pela perda de alguém.

    Excelente texto!!

  2. Há tempos ando me iludindo com alguns pretextos, coisas da minha cabeça! Quando a “coisa” começa a querer engrenar, fujo da raia. Sensação deliciosa desses dois. Talvez um dia aconteça, quem sabe…

  3. Baltasar Pereira disse:

    Esta Crônica toda se passa durante uma festa.
    Parece que estou junto com o narrador pela maneira que vai descrevendo as situações e eu ficando ansioso em saber o que vai ocorrer entre os dois personagens.
    Crônica leve, deliciosa e mostra uma situação que poderia ocorrer com qualquer pessoa.
    Inclusive sente-se o clima que parece estar havendo entre os dois .
    👏👏

  4. Marco Antônio Gonçalves disse:

    Adorei o texto, fico no aguardo da continuação…..

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