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TENTATIVAS

Fim de tarde na praia. O sol se põe no horizonte, tingindo o mar de uma laranja belíssimo. O céu começa a ficar mais azulado neste dia de verão. Um vento fresco sopra do mar para a terra. Sinto a brisa no rosto e isso me deixa feliz. Entre um gole e outro da cerveja gelada, converso com um amigo de longa data, e suas histórias vão preenchendo a tarde ociosa e tranquila, na qual só ouvimos o barulho das ondas brancas de encontro à areia.

Começamos a falar do passado e ele me conta:

“Quando a juventude chegou e senti a necessidade de amar e ser amado, muita coisa mudou na minha vida. Certos comportamentos e certas companhias já não me satisfaziam mais. Ficar sozinho doía, ser sozinho era difícil, muito difícil.

Sem saber muito bem – ou quase nada – do que o mundo me reservava aqui fora, fui procurar quem me quisesse e quem poderia me fazer feliz. Munido de coragem e de ilusão (quanta ilusão!), pensei que encontrar o amor seria tarefa fácil, afinal eu era jovem, e a juventude é a palavra de ordem num mundo tão superficial como este.

Encontrei um homem mais velho por quem me apaixonei. Ele tinha 20 anos a mais do que eu. Era experiente, bonito, interessante e podia me ensinar muita coisa que eu não sabia. No começo, tudo foi muito bom. O sexo era prazeroso, a gente se entendia muito bem, conversávamos bastante e ele parecia apaixonado… até que seu temperamento veio à tona e eu descobri um homem bastante grosseiro e cheio de manias. Embora me ensinasse muita coisa – como ouvir música clássica, ler grandes escritores e degustar bons vinhos – suas constantes alusões à minha condição social – eu era um rapaz pobre, morador do subúrbio, que levava muito tempo para chegar à casa dele de ônibus e que tinha de sair cedo porque os mesmos ônibus não rodavam a noite inteira – e as palavras rudes que vivia dizendo fizeram com que a coisa esfriasse e eu me afastasse.     Sempre criticava minhas roupas e meus gostos. Muita arrogância e muito desdém. O cara era cheio de dar ordens. Faça isso, não faça aquilo. Nós tínhamos nos conhecido numa boate… e não é que o cidadão detestava boates? Só frequentava esses lugares para caçar. Deixei de ir por causa dele. Valia o esforço, pensei. Depois, todo fim de semana tinha que ser num sítio que ele tinha no interior. Um fim de mundo. Uma cidadezinha minúscula e o sítio ficava no interior dessa cidadezinha. Veja só: no meio do nada! Você acha que eu nasci pra ser sitiante? Aquela coisa de fazer pão em casa, matar galinha do quintal, tirar leite da vaca de manhã… um horror! Aguentei aquilo por um ano. Até que aguentei muito. O negócio é que, quando o sexo é bom, a gente faz umas coisas que não têm cabimento. A gente se anula. Sou um cara metropolitano. Gosto da cidade – com tudo o que ela tem de bom e de ruim.

Além da vida no mato, ele tinha um temperamento bem difícil. E eu era um garoto inexperiente. É uma coisa complicada você entrar na vida de alguém que já tenha costumes e hábitos enraizados e que, ainda por cima, tem espírito de sargento de infantaria. Eu não brigo. Detesto brigas, e aquilo foi corroendo o que eu sentia por ele. Num belo dia, farto de humilhações e grosserias por parte do cidadão, dei a entender que eu estava pulando fora. Era isso ou me magoar mais do que já estava magoado. Caí fora mesmo. Decepcionado, um tanto ferido, mas ainda vivo. Ele, claro, se sentiu injustiçado. Como assim, eu estava terminando o namoro? Quem era eu pra fazer isso? Escreveu-me um textão hostil no Whatsapp, no qual me ofendia (mais!) e dizia que eu não sabia o que estava perdendo sem ele ao meu lado. Eu podia imaginar o que estava perdendo…

Admito que aprendi muita coisa com ele naquele ano de relacionamento, mas o preço foi alto… foi bem alto. Nada é de graça, meu amigo!

Depois, conheci um rapaz da minha idade – tínhamos 25 anos. Foi no metrô. Veja só! De início, foi mesmo a atração física e o tesão que sentíamos um pelo outro. Ele tinha as mesmas dificuldades que eu na vida pessoal – humilde, trabalhava e estudava, vivia com os pais na periferia e, por conta de tudo isso, tínhamos uma sintonia bacana. Havia, contudo, um diferencial: ele era extremamente religioso e jamais conseguiu viver sua sexualidade plenamente, o que se refletia, claro, em sua vida sentimental. Tudo era pecado! Nós éramos o pecado encarnado. Quando aquela conversa sobre inferno, fogo ardendo, castigos e punições começava, a coisa ficava tão chata que eu me abstraía e não dava muita bola. Sua família não podia imaginar que ele fosse gay. De jeito nenhum! Nas vezes em que ele se desligava um pouco disso e ‘pecava conscientemente’, a transa era boa, o namoro também. Mas era raro que isso acontecesse.

Chegou um momento em que me cansei. Administrar aquilo estava me cansando. Ele era infeliz, coitado!, e não enxergava o poder que os outros tinham sobre ele. Manipulação das bravas! Lavagem cerebral que só lhe trazia culpa e, consequentemente, infelicidade. Foi ele mesmo quem pôs fim ao namoro: não aguentava mais se sentir um pecador. A expectativa de queimar no inferno era demais pra ele. Chorava, às vezes, depois da transa, e aquilo era uma xaropada! Pra falar a verdade, senti alívio quando ele se foi. Hoje, quando penso nele, sinto um pouco de pena. Deve ter se casado, deve ser pai de uma renca de filhos, deve trair a esposa com outros homens etc. Uma história mais comum do que se pensa.

Bem, se com o mais velho foi o que foi e com um cara da minha idade a coisa não melhorou muito, vamos a um mais jovem, pensei. Um garoto ainda não corrompido pelo mundo, um carinha maior de idade (lógico!), mais ainda não contaminado por esta vida, pra quem eu pudesse ensinar algumas coisas que eu mesmo havia aprendido com as cacetadas que eu tinha tomado.

Muito tempo depois de ter me separado do religioso, conheci uma criatura num desses aplicativos de sexo. O menino tinha dez anos a menos que eu. Bonito, simpático, divertido e… cabeça de vento. Idade cronológica: 21 anos; idade mental: 12. Tirar o mocinho do celular era uma dificuldade. Só desligava aquilo para transar, e, mesmo assim, parecia um coelho na cama. ‘Vai ser bom, não foi?’. Já acabou? Já tinha acabado. E lá estava o cidadãozinho com o olho pregado no aparelhinho. Um mimo! Tirava foto da comida, do suco, da sobremesa. Tirava foto do restaurante em que eu o levava. Tirava a tal de ‘self’, comigo, sem mim, só ele, com o meu cachorro. Postava tudo em redes sociais. Não havia um passo que o rapaz desse sem um registro para a coletividade e para a posteridade. Eu estava era namorando uma subcelebridade!

Ele tinha um corpo perfeito, mas uma cabeça um tanto defeituosa. Não gostava de estudar e achava que ler era perda de tempo. Seu português era medonho. Estava fazendo um supletivo para tentar concluir o ensino médio. Música? Só aquela coisa meio falada, meio cantada, fazendo alusão a violência, crimes, desemprego, fome etc. Cinema? Só filmes de super-heróis, “com bastante adrenalina”. Dizia que não queria dormir no cinema, por isso os filmes ‘não podiam ser parados’. No tempo em que fiquei com ele, tornei-me um especialista na Marvel e na Comics. Fiquei sabendo da origem do Super-Homem e da morte do Batman e do porquê de eles ‘tretarem’ muito (Meu Deus!). Hulk, Capitão América, Homem Aranha, Homem de Ferro… toda essa gente começou a fazer parte das minhas horas de lazer. Até que cansei. Um dia, farto de filmes barulhentos, cheios de efeitos especiais e tramas vazias, disse que não o acompanharia no lançamento do Batman contra o Super-Homem. Ele foi sozinho ao cinema. Acho que sozinho, sei lá! Mandei uma mensagem ao garoto, dizendo-lhe que me dissesse quando o filme tivesse terminado para sairmos e comermos aquela tonelada de hambúrguer que ele costumava comer com um quilo de batata frita e dois litros de refrigerante. O rapaz era uma draga.

Ele leu a mensagem – deu pra ver pelos cliques em azul do Whatsapp – e nunca me respondeu. Lá se vão alguns anos. Sumiu sem mais nem menos. O que mais me encanta nesta geração é a consideração e o respeito que eles têm para com as outras pessoas. Será que feri seus sentimentos porque não quis ver o Batman brigando com o Super-Homem? Será que foi isso? Ofensa imperdoável a minha! Ele deve ter achado alguém mais interessante no aplicativo, lógico. Gente assim não perde tempo.

Olho pra trás e lembro de cada uma dessas figuras. Penso em mim mesmo e em como eu mudei daqueles dias até hoje. Claro que não sou perfeito! Jamais serei. Eles também devem ter suas queixas de mim. Dizem que, quando a gente tem uma relação com alguém, temos uma relação com três pessoas, na verdade: a pessoa que pensamos que ela é (a idealização!); a pessoa que ela realmente é (a revelação!); e a pessoa que ela se tornará ao nosso lado (a transformação!). Aprendi com eles, certamente que sim…

Mas, cara, relacionamentos dão um trabalho!”.

Vou ouvindo essas histórias, enquanto não tiro os olhos do mar azul à nossa frente. Tudo é muito bonito. Meu amigo vai falando, e vamos rindo de seu modo de contar seus casos. Ele é engraçado, sabe rir de si mesmo e de suas tristezas e decepções. Lembro de Guilherme Arantes e do verso bonito de uma de suas músicas: “A arte de sorrir cada vez que o mundo diz ‘não’!”

Poucos conseguem isso.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

5 Comments

  1. Roberto disse:

    Os relacionamentos são sempre um aprendizado! Parabéns por mais essa crônica, Vitão! Abraço, Bob

  2. Professor, na nossa geração era difícil, imagine agora! Figuras e mais figuras aparecem em nossas vidas – ao mesmo tempo que quero alguém, chego a conclusão que não será nada fácil, será muito complicado e acabo desistindo. Como dizia minha mãe: “quanto mais eu rezo, mais sombração me aparece”.

    • Angelo Antonio Pavone disse:

      Olá Prof Vitor
      Excelente crônica. Viver não é fácil. É um aprendizado constante.
      É um desafio diário. Esta crônica é um exemplo.
      Parabéns!!!!@

  3. Ricardo Cano disse:

    Que delícia de texto! Adorei a abertura e o encerramento! Terminei a leitura com um sorriso sorrisinho maroto no rosto e uma sensação de profundo dejá-vu. 😊

  4. Clarice keri disse:

    Que texto gostoso, serve para pensarmos nas nossas relações, adorei, obrigada.

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